Transcrição da entrevista exibida pela Globo News no dia 17/02/2018 com Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da UFF (Universidade Federal Fluminense) sobre a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro.
Jornalista: – Para falar sobre esse decreto de intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, recebo aqui no estúdio a professora Jacqueline Muniz do Departamento de Segurança Pública da UFF, Universidade Federal Fluminense. Professora, bom dia pra você.
Jacqueline Muniz: – Bom dia a todos.
Jornalista: – Muito obrigado pela presença aqui na edição das 10 da manhã. Queria que a senhora analisasse, primeiramente, qual a expectativa dessa mudança no comando da segurança pública no Rio de Janeiro.
Jacqueline Muniz: – A expectativa eu diria que não é otimista. É pior do que mudar seis por meia dúzia, como ficou claro na fala do ministro. A pergunta que a gente tem que fazer é a seguinte, ninguém foi pego de surpresa com essa ambição de intervenção colocada no decreto. Primeiro que o Rio de Janeiro desde 1992, com a Eco-92, vem experimentando formas diretas e indiretas de intervenção das forças armadas na segurança pública do Rio, ok? Então, isto não é uma novidade.
Segundo, ponto que é importante chamar, pra gente usar uma imagem do Carnaval, é que as operações de GLO [Garantia da Lei e da Ordem] na Rocinha, no Salgueiro e antes disso na Maré, serviram como uma espécie de ensaio técnico em que ninguém mostrou quais foram os quesitos e as notas que tiraram. Até agora, apesar de ter gasto quase 300 milhões na Maré por mais um ano, aqueceu a panela de pressão sem produzir resultados substantivos e ninguém apresentou os relatórios de eficácia, eficiência e efetividade do emprego das forças armadas em suporte a ação da força policial no Rio de Janeiro.
O que nós tivemos e temos assistido no Rio, pra ser muito clara, é a substituição do arroz com feijão da segurança pública, que é o que funciona, correto? Não é a invenção da roda, o dia a dia dos policiamentos substituídos por operações policiais, pelo sobe-desce-morro, pela teatralidade operacional que tem rendimento político, rendimento eleitoral, rendimento midiático, mas pouco efeito no cotidiano. Se é de fato pra combater o crime organizado, não será esse efeito “espanta-barata” que tem se produzido com sobe-desce-morro, com a chamada “síndrome do cabrito” agora articulada, envolvendo as forças armadas. Que aliás, tem plena consciência de sua incapacidade de agir como polícia, de tal maneira que demandaram um salvo conduto, uma proteção através de um decreto, que transfere seus erros, suas violações para a justiça militar.
Jornalista: – Agora tem uma mudança inclusive na forma de atuação das forças armadas. A senhora citou bem a Eco-92, primeira vez em que as forças armadas foram chamadas para participar de grandes eventos. Depois teve a Jornada Mundial da jJventude, Copa do Mundo, Olimpíadas e a participação das forças armadas nessas operações envolvendo as comunidades.
Jacqueline Muniz: – Exatamente.
Jornalista: – Mas até então, a segurança pública e a orientação, o comando partia da cúpula do governo do Rio de Janeiro. A gente viu nos últimos meses muito atrito entre o governo federal e o governo do Estado. Aquela reunião entre Jungmann e Pezão, os dois disseram que foram “arrumar a viola”, “tiveram uma DR”; a senhora acredita que agora, como o jogo vai mudar?
Jacqueline Muniz: – Não tem como mudar. Isso é um ilusionismo e é preciso ser claro com a população. A primeira coisa é: tem alguém enganando alguém. O governador passou a perna nas policias ou as policiais fizeram um bypass* no governador. Por uma questão muito simples que a população precisa saber. Há quinze dias atrás, a Polícia Militar faz um seminário com apoio do Viva Rio, dentro da FIRJAN, de planejamento estratégico dessa polícia do futuro, a polícia de 2018. Estavam presentes o secretário de segurança, o ministro Jungmann da Defesa, todos estavam lá, e desenharam um plano, uma proposta ou vinha de setores da sociedade pra entregar ao governador. Quinze dias depois todo mundo é pego de surpresa? A intervenção federal no Rio de Janeiro não é um efeito especial de escola de samba que ninguém sabe e fica sabendo no sambódromo da insegurança pública no Rio.
O que é isso? Quem passou a perna em quem? De um lado é o governador que entregou o Rio de Janeiro de porteira fechada, porque quem abre mão da segurança, abre mão da governabilidade, da capacidade de governo. Não é falando alto, não é gritando forte que vai fazer as polícias funcionarem. Se tinha ingovernabilidade na segurança não é o exército falando alto de bigode que vai conseguir produzir. Porque, afinal, nem as forças, as espadas no Brasil das forças armadas, mas da polícia federal a guarda na esquina não têm dispositivos de controle interno, de controle externo e de governabilidade. Fazê-las funcionar é um gesto de boa vontade e de camaradagem entre pares. É um pedido de “por favor, trabalhe ali na esquina”. Esse é o primeiro ponto.
Segundo, e é importante que a população do Rio tem que saber, o Ministério Público tem um termo de ajustamento de conduta que já está há dois anos cobrando do governo do Estado um plano de segurança, um conjunto de ações estruturais e sistêmicas pra reduzir a matança de policiais e a matança de civis. Mudanças na estrutura da segurança pública do Rio de Janeiro ao qual os prazos estão vencendo e o governador nem ninguém apresentou. Por sua vez, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro tem uma ação civil de redução de perdas e danos exatamente pra evitar a matança com propostas substantivas de mudança continuada para que a gente não caia nessa fórmula fácil de achar que a espada sozinha resolve, porque ela vai cortar pra todos os lados, inclusive a cabeça dos governantes e daqueles que hoje sentam na cadeira. Então, tem uma situação crítica aí. A quem está se enganando e por quê?
Jornalista: – Professora, vamos dar uma olhadinha no andar da carruagem aqui no Rio de Janeiro. Depois de oito meses depois de muita costura, de muita promessa, de muita negociação, de reunião, vai-e-vem, anunciaram o tal plano integrado de segurança pública depois de uma reunião apressada entre o governador, o secretário de segurança pública Roberto Sá, chefia da PM, da polícia civil. No final das contas, esse novo plano que era tido como a salvação da segurança pública do Rio de Janeiro não durou nem uma semana. O governador não esperou nem esse plano ser realmente efetivado — e vamos lembrar aqui, o plano foi bastante criticado por ser um museu de grandes novidades — reciclar anúncios, dizer que ia colocar mais efetivo. Enfim, esse plano não durou uma semana.
Jacqueline Muniz: – É. O plano era mais do mesmo. Então, eu volto a dizer o que tinha dito antes, vocês não acham estranho que, exatamente no momento em que o Ministério Público já há mais de um ano desenhou um termo de ajustamento de conduta que envolve um conjunto de ações estruturais, de mudança dentro das polícias pra fora, a mesma coisa a Defensoria Pública, o governo do Estado tinha que entregar a partir das audiências públicas, tá devendo, aliás, já passou do prazo, né? Que tenha sido feita uma reunião com ONGs, com PM, com empresariado, pra desenhar esse plano de ações — que aliás é simplório, é medíocre, é mais do mesmo — e de repente todo mundo é pego de surpresa?
Dá a impressão de que o comando militar chegou no Rio de Janeiro pra passar o Carnaval, gostou da cidade e resolveu governar. Não é assim. Tem uma articulação política por trás, sim. E se é mesmo pra combater o chamado “crime organizado”, como metástase, não existe crime organizado que não tenha chancela, conivência e conveniência de setores do Estado, de setores do governo. Afinal, é através do dinheiro do crime que se faz caixa 2 de campanha. E, que crime é esse? Através das mercadorias ilegais que vai da banda larga às drogas.
Mas, voltando ao ponto do Rio de Janeiro, por que a polícia civil foi intencionalmente sucateada no seu trabalho de inteligência, no seu sistema de dados, nas suas equipes de investigação e na atividade de perícia? Porque pelo que eu saiba e que o mundo saiba, em termos de de pesquisa, do que funciona e do que não funciona, é a atividade discreta e não barulhenta, espetacular de investigação e inteligência que consegue desbaratar economias criminosas. E não o efeito “espanta-barata” da ostensividade. Aqui a gente faz polícia de espetáculo, polícia ostentatória, cara, polícia ostentação. Isso por um lado, por outro, transformaram a polícia militar numa mercadoria , venderam o policial, alugaram, precarizaram o policial militar pra iniciativa privada. “Lapa Presente”, “Lagoa Presente” que até então, todo mundo acha lindo. E por que achava lindo? Porque ninguém presta contas. É igual o decreto do Temer, ‘pode tudo mas eu não dou satisfação a ninguém. Mas e aí, vai atuar como polícia? Eu não, eu tenho medinho. Eu só quero mandar’. O sucesso é meu, o fracasso é de quem tá lá na ponta do PM da esquina e do policial.
Então, só pra fechar. É mesmo pra combater o crime organizado? E aí vou citar alguns pesquisadores, por exemplo, a Camila Dias, tem insistido — como muitos outros pesquisadores — na unidade de comando do PCC. Quem tem um governo criminoso, unidades de comando em todo país se chama PCC. Alguma coisa tá sendo feita em São Paulo já que é um governo criminoso com unidade de comando? Porque no Rio de Janeiro são franquias ocupacionais, mais fáceis de combater uma vez que elas não tem unidade e disputam territórios. Será que é isso, ou não? Será que é um outro tipo de arranjo político que salva o governador de alguma coisa que a gente não sabe o que é e ele entrega os seus votos, entrega o governo, pras pessoas brincarem de governo militar.
Jornalista: – Professora, tem outras questões que eu gostaria de repercutir com você e com outros especialistas da área de segurança pública como, por exemplo, transparência de dados. O Ministério Púlico do Estado já reclamou essa semana , deu uma entrevista dizendo que falta transparência nessa situação envolvendo dados da polícias. É uma reclamação também envolvendo os bastidores do Exército que reclamam dessa falta de transparência. Quero agradecer muito a entrevista.
Jacqueline Muniz: – Gostaria que você me permitisse falar sobre isso que é muito importante.
Um. Primeiro eles dizem que tem integração, quando a gente sabe que na prática não há. A primeira coisa é que não temos mecanismos de governabilidade das polícias no brasil, não é apenas no Rio de Janeiro.
Dois. Os dados aqui são tratados como questões pessoais, intransferíveis e ambulantes, ou seja, não se produz inteligência e sim, disse-me-disse, fofoca de um contra o outro. E mais grave que isso, tem agora uma intervenção. Então, do limão a limonada, tem um governo militar? Porque um governo militar com ocupação de retórica da paz foi a UPP, que foi sabotada por dentro. Agora sobra de novo a lógica da teatralidade e do confronto. Fechando. Então, se tem uma intervenção porque o Rio de Janeiro está ingovernável, se é essa a retórica que se quer fazer acreditar, é fundamental que se tenha uma auditoria imediata na Polícia Militar pra saber em que estado ela está e foi precarizada, em que estado o interventor vai entregar. O mesmo na Polícia Civil, o mesmo no Corpo de Bombeiros, o mesmo no Sistema Prisional. Mas, é necessário observação externa e internacional. Isso não é brincadeira, aqui ninguém presta contas. Cadê os relatórios da operação do Salgueiro? Da operação na Rocinha? Cadê a prestação de contas? O sucesso aqui tem a ver com a manipulação dos dados. Como é que você diz que tá seguro? Quando você esconde a informação e produz a autocensura, isto não é produzir segurança pública.
Agora, o que quero fechar é dizendo que muita gente vai ganhar com isso. O crime organizado agradece. O PCC agradece. Os falsos profetas da segurança pública agradecem e os mercadores da proteção. Estamos diante de uma temporada de abertura das chantagens corporativas e das negociatas da segurança. Que Deus nos proteja porque ele está ainda no Rio de Janeiro.
*Bypass é um termo da língua inglesa que significa contornar, desviar, passagem secundária ou dar a volta.