Texto de Pamela Sobrinho para as Blogueiras Feministas.
Quando eu nasci, a sociedade a qual eu estava inserida achava que eu teria que ter menos direitos porque nasci mulher. Escandaloso isso porque é real. Nasci com menos direitos que os homens, afinal direitos básicos como o voto, foram recentemente conquistados. Para quem não sabe, o movimento sufragista, do início do século XX consistia na luta para que mulheres pudessem votar. Sim, votar. No Brasil, apenas com a Constituição Cidadã de 1988, a condição de equidade de gênero e a proteção dos direitos humanos das mulheres foram asseguradas pela primeira vez.
Direto ao meu corpo? Quanta ousadia, mulher! Afinal, o controle de natalidade das mulheres surgiu nos anos 60 com a pílula anticoncepcional, e estamos encarregadas sozinhas de nos cuidarmos de uma gravidez indesejável. Porém, quando a gravidez acontece, não temos autonomia sob nosso corpo, homens brancos e velhos ditam as leis sobre eles. Contraditório não? Afinal, se eu tenho que me cuidar, por que quando uma gravidez indesejada acontece, não posso abortar?
O mundo em que vivemos é muito estranho. Na legislação brasileira já existiu o Estatuto da Mulher Casada. Até meados dos anos 80, pela lei, as mulheres só poderiam trabalhar mediante autorização do marido ou do pai. Até 2005, existia uma lei que anulava o crime de estupro caso o autor casasse com a vítima. E, até bem pouco tempo, homens tinham autorização para matar mulheres em nome da honra. Leis feitas por homens em favor de homens. Ganhamos 30% menos exercendo os mesmos cargos e funções, a maternidade é quase compulsória, porém, sofremos com a dificuldade de realocação no mercado de trabalho. Afinal, o número de mulheres despedidas após a licença maternidade é grande.
Mas eu nasci privilegiada. Afinal, sou branca, cis, hétero e estudada – diga-se de passagem que estudei através de programas sociais e de redistribuição de renda. Nasci privilegiada em relação as mulheres negras, que ganham ainda menos que eu. As mulheres trans, que menos direitos têm que eu. Essas mulheres estão diariamente mais expostas a todos os demônios dos quais tenho corrido a minha vida inteira, elas diariamente se encontram com ele. Mulheres que tem seus direitos violados por conta de sua classe social, cor, identidade de gênero.

Alguém ainda se lembra de Claudia Ferreira da Silva, a mulher negra, mãe e moradora da periferia que foi arrastada viva por policiais? Alguém sabe que a média de idade de uma mulher trans é 35 anos e, que a maioria morre por violência extrema? Alguém ainda se importa com nossos corpos? Alguém se importa se sofremos com a imposição de padrões estéticos escravocratas e inalcançáveis? Ou que nossa sanidade mental é violada diariamente diante do medo de se andar nas ruas?
Diante de tantas realidades, a luta por nossos direitos parece uma longa e árdua corrida contra o tempo, tantas pautas a serem conquistadas, mas eu ainda tenho que defender que feminicídio existe, sim. Afinal ,vemos os números crescentes de mulheres que morreram por serem mulheres, mulheres jogadas de sacadas ou metralhadas na rua, temos que defender que em briga de marido e mulher se mete a colher, sim. Defender que a culpa do estupro nunca é da vítima, que existe violência física, psicológica e patrimonial. Temos que defender nossos direitos mínimos, que com as atuais reformas trabalhistas e possíveis reformas da previdência vão precarizar ainda mais nossa força de trabalho. Estamos atualmente expostas aos riscos de uma reforma da previdência que não reconhece nossa tripla jornada de trabalho. Diante de tantos retrocessos, como lutar pelas demais pautas que tanto nos afligem?
Nasci numa sociedade excludente, onde nós, mulheres, temos que lutar diariamente por igualdade. Nasci numa sociedade que impõe uma maternidade compulsória mas me desampara. Nasci numa sociedade em que alguns acham que devo ganhar menos porque posso engravidar. Nasci numa sociedade em que outros acham que mulheres negras não servem para casar. Nasci numa sociedade em que quando uma mulher assume voz na politica é brutalmente assassinada ou retirada de seu posto. Nasci numa sociedade que homenageia torturadores e ditadores que feriram profundamente as mulheres. Nasci numa sociedade que tem 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai no registro e de milhares de mulheres chefes de família, mas mesmo assim nos responsabilizam pela violência e falam que criamos uma fábrica de desajustados.
Nasci numa sociedade que recrimina a sexualidade da mulher e não admite que ela tenha autonomia sobre o próprio corpo. Nasci numa sociedade em que mulheres são chamadas de fraquejadas. Nasci numa sociedade em que o estupro é visto como um elogio: “eu só não te estupro porque você é feia”, já dizia alguém por ai. Nasci numa sociedade em que ser mulher é ter várias jornadas de trabalho e mesmo assim não ser reconhecida. Nasci numa sociedade que não admite que eu tenha o papel de dona do meu destino, minha vida pessoal é vista como algo público, onde todos podem opinar. Nasci numa sociedade que não admite que eu seja forte ou melhor que um homem. Nasci numa sociedade que odeia mulheres.
Mesmo assim não desisto dessa luta árdua. Apesar de ter nascido nessa sociedade, eu nasci de uma mulher forte, corajosa, batalhadora, incrível. Uma mulher que nunca vi fraquejar. Sou neta de uma mulher incrível que, apesar da sociedade em que ela estava inserida e de toda dor, nunca baixou sua cabeça e já colocou muito homem no chinelo. Sou irmã de uma mulher incrível que cria seu filho com a ajuda da minha mãe e elas não estão criando um desajustado, e sim um homem justo e honesto. Apesar de todas essas dificuldades, não vou deixar que a luta das mulheres que morreram para que eu pudesse votar, trabalhar e ter direitos seja em vão. Não vou deixar apagar a imagem das Cláudias, Marieles, Dandaras e tantas outras, mortas, mutiladas e assassinadas por quererem justiça. Não podemos deixar que as vozes das mulheres mortas pelo machismo sejam silenciadas.
Por isso irmãs, vamos levantar e ir à luta!
Autora
Pamela Sobrinho é economista no Sistema S, editora na revista Betim Cultural, blogueira, mulher, feminista, sem denominações religiosas, mas amante do respeito e da igualdade. Escreve no blog: Universo de Pam.