Consumo e Publicidade Feminina

Dentro de toda discussão sobre a propaganda da Hope, é interessante que poucas pessoas estejam discutindo as relações entre consumo e publicidade feminina. Todos sabemos que as mulheres compram mais que os homens, desde o supermercado da casa até miudezas em geral. A fama de compradora da mulher nasce com a invenção da vida moderna e de produtos industrializados voltados para o lar como liquidificadores, batedeiras, máquinas de lavar, etc. Porém, o discurso publicitário foi fundamental para tornar a mulher uma compradora nata.

Estou lendo um livro de crônicas chamado “Mulheres: por que será que elas…?” (2007) da jornalista Leila Ferreira. No capítulo: “… sempre encontram o que comprar?”, a autora relata:

“O que acontece com as mulheres que não gostam de fazer compras é que elas ainda não acharam a loja certa”: a frase é da atriz Bo Derek e resume a compulsão que acompanha a maioria das mulheres ao longo da existência. Sociedade de consumo, exploração da insegurança feminina…, as variáveis que explicam nossa fixação pelas compras são conhecidas, mas o fato de conhecê-las não tem sido suficiente para mudar nosso comportamento. Não são só roupas, sapatos e bolsas que nos tiram do sério. Compramos de tudo: o que devemos comprar, o que não devemos nem podemos, o que é essencial para nós e o que é absolutamente supérfluo. Você já viu algum homem comprar “lembrancinhas para deixar guardadas”, alegando que podem quebrar o galho quando aparecer algum aniversário? Agora pense em quantas mulheres você conhece que fazem isso. (pg. 58-59)

Imagem de outdoors na Times Square em Nova York. Foto de Dom Dada, no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

O capitalismo estabeleceu uma relação simbiótica com as mulheres. Por serem responsáveis pela educação da maioria das crianças (como mães e professoras); as mulheres são também as principais responsáveis pela disseminação de crenças e valores. Portanto, não é estranho que mesmo mulheres modernas continuem comprando lembrancinhas para ocasiões futuras, sendo que homens muitas vezes nem se preocuparão com presentes. Estamos sempre numa roda-viva de preocupações constantes. É a roupa acumulada que precisa ser lavada, a festinha do escritório que precisa ser organizada, a lista de aniversariantes do curso de inglês que precisa ser feita, o presente de aniversário do coleguinha do filho que precisa ser comprado. Organização, controle e perfeição perseguem muitas mulheres. E, concomitante a esse excesso de atribuições, a publicidade sempre nos estimula a ter novas demandas. Seja um aromatizador para o banheiro ou um novo colchão com recheio de bambu.

Excluindo-se propagandas de produtos vendidos como tipicamente masculinos, por exemplo: barbeadores, desodorantes e carros (quantas vezes você já viu uma mulher dirigindo numa propaganda de carro? quantas mulheres você conhece que dirigem diariamente?); a grande maioria da publicidade veiculada na tv aberta tem como público-alvo a mulher. Comerciais de eletrodomésticos com atrizes globais sorridentes, iogurtes que fazem bem ao intestino, maquiagem, produtos alimentícios, higiene pessoal e de limpeza. Carla Rodrigues fala sobre esse início da relação entre consumo e publicidade feminina:

Os primeiros brasileiros a entrarem na modernidade foram os moradores dos dois maiores centros urbanos brasileiros, Rio de Janeiro e São Paulo. Cariocas e paulistanos acreditavam que o consumo era o passaporte para a modernidade, ainda que para isso fosse necessário reforçar os valores da sociedade patriarcal da qual se parecia querer sair. O melhor exemplo era a ênfase no lugar da mulher como rainha do lar. Todas as propagandas eram direcionadas ao público feminino, numa aposta de que as “rainhas do lar” seriam decisivas na resolução de compra. Aqui, Silvia chama a atenção para uma contradição. O público-alvo das campanhas publicitárias era sempre a mulher – tendência que ainda hoje se confirma –, porque a aposta era de que ela seria o agente da mudança de valores da qual dependia a indústria para vender seus novos produtos. Ao mesmo tempo, para que as mulheres fossem o motor dessas mudanças, era preciso que a propaganda reforçasse o tradicional papel feminino de dona-de-casa.

Facilitava o fato de que as donas-de-casa eram principalmente as beneficiadas pelas maquinarias de conforto que ingressam no cotidiano das famílias: ferro e chuveiro elétrico, fogão a gás, liquidificador, batedeira de bolo, geladeira, aspirador de pó, enceradeira, TV. Alimentos, até então vendidos a granel na quitanda da esquina, passam a ser industrializados, os legumes são enlatados, o consumo de refrigerantes e de chocolates multiplica-se, tudo isso oferecido em mais uma novidade moderna, o supermercado, para o qual a venda, o armazém, o açougue e a quitanda vão perdendo terreno. Mulheres também eram o alvo da indústria de cosméticos, que chega para substituir os produtos caseiros e para criar novos padrões de beleza. Marcas como Max Factor, Helena Rubinstein, Elizabeth Arden e Avon passam a ocupar o armário do banheiro e hábitos como pintar o cabelo para parecer mais jovem se consolidam como mais um sinal de modernidade. Continue lendo em A invenção do consumo.

A partir do momento que a mulher é alvo principal da publicidade é preciso pensar sobre crenças, estereótipos e estruturas sociais que compõe a imagem da mulher nas propagandas. Como essa imagem age nas representações simbólicas do feminino e na constituição psíquica das mulheres reais? Se o que vemos na publicidade não reflete nossa imagem real, se nos vendem apenas um mundo de sonhos, quais as consequências para crianças e adolescentes em formação?

Importante frisar que a publicidade tem função social restrita, agindo na maioria das vezes em função de uma causa comercial. Diferentemente de um filme, um livro ou uma peça de teatro, a publicidade não é representação cultural. Ela pode gerar benefício público, mas não deve ser beneficiada com o direito a liberdade de expressão. Como explica Paulo Moreira Leite:

Um anuncio precisa ser pago para ser exibido. A liberdade de expressão é parte da história da humanidade que criou e defendeu direitos humanos. A publicidade é filha da economia de mercado. De certa forma, é preciso ter uma visão mercenária de liberdade de expressão para confundí-la com campanhas publicitárias. A liberdade não tem preço. A publicidade tem.

Isso acontece porque são coisas diferentes. A liberdade é uma causa universal e envolve o interesse público. O direito de opinião pertence a todos homens e mulheres. Deve ser amplo e irrestrito. A publicidade possui um organismo que tem autorização para praticar a autocensura, que é o CONAR, um conselho de autoregulamentação que reune represantes do setor e atua em nome dele. Ele pode determinar a retirada de uma campanha do ar. Continue lendo em Ainda no sutiã de Gisele.

Portanto, a publicidade deve ser regulamentada, justamente para não se transformar em instrumento de divulgação de informações, sem imparcialidade, manipuladas ou mesmo falsas. A publicidade busca inspiração no comportamento, na atitude e nos valores sociais vigentes. Ao mesmo tempo que é influenciada, também influencia seu contexto sócio-cultural. Sabemos que propaganda é a alma do negócio, mas me parece que a alma das mulheres está valendo mais. Especialmente quando somos bombardeadas por imagens e informações sobre como uma mulher deve se vestir, usar o cabelo, falar, andar e viver. Não há espaço para a mulher real num mundo publicitário que nos define os mesmos papéis há mais de 50 anos.

[+] Textos bacanas sobre o assunto:

[+] A presença das mulheres na TV é de quantidade, raramente de qualidade da Luka

[+] Propaganda da Barbara Lopes