O dilema do trabalho doméstico

Mais um texto questionando a normose de se ter uma empregada

Terça foi dia de faxina em casa. Eu e marido aproveitamos o feriado chuvoso pra esfregar tetos, paredes e chão no banheiro e na cozinha. Depois de duas horas da maior ralação, fomos para o chuveiro e saímos para almoçar. Comemos o picadinho como dois refugiados, em silêncio. Exaustos. Depois de um tempo, e por conta de nosso cansaço após somente duas horas de esforço pesado, começamos a discutir o trabalho doméstico.

Meu marido nasceu nos Estados Unidos, e lá ter uma empregada é um luxo inacessível para a maioria das pessoas – inclusive para muitas que aqui podem pagar por esse serviço. Desde pequeno, ele se acostumou a limpar o que suja. Mais que isso, ele está acostumado a ser o mais auto-suficiente possível no que diz respeito aos cuidados da casa: de pintar as paredes do apartamento a construir penduradores de panelas, prateleiras e suportes para plantas, ele prefere fazer tudo a contratar o serviço de alguém. Para ele, a auto-suficiência é um valor, e ele se sente bem, e orgulhoso, de fazer as coisas por ele mesmo.

Eu venho de outra realidade. Brasileira de classe média, tive, por muito tempo, empregada em casa. Com exceção do último ano, sempre tive, ao menos, faxineira. E sei que essa é a realidade de muita gente que conheço, gente que não é rica mas que pode pagar uma pessoa para limpar a casa. Dentro desse microcosmo, de certa forma, o valor não está em fazer as coisas por suas mãos, mas em ter as condições para contratar alguém pra fazer.

É curioso como essa situação, muitas vezes, não é entendida como o que ela é de fato: um privilégio. De alguma forma, ter uma faxineira ou empregada parece o natural, quase um direito garantido em constituição. O trabalho doméstico parece estar acima das forças das pessoas. É interessante notar como gente que faz trabalhos intelectuais altamente qualificados se sente impotente perante uma privada para limpar, ou mesmo de uma pilha de louças sujas. E, aqui, me incluo na crítica: tem dias que parece mais fácil encontrar a saída para a fome no mundo que esfregar a gordura de uma frigideira. (E sim, esse é um dilema bem “classe média sofre”; mas acho importante saber de onde estamos falando para poder identificar os problemas e dificuldades dessa posição.)

Limpar banheiro, quem curte? Cena do Filme Domésticas (2001)

Não pretendo discutir aqui o fato de o trabalho doméstico ser uma herança das relações coloniais. É, assim o sabemos. A questão é: o que fazemos com esse trabalho, agora que chegamos até aqui e vivemos o que vivemos? De um lado, muitas mulheres dependem das empregadas e babás para poderem ter suas profissões sem serem esmagadas por jornadas triplas e quádruplas. De outro, essas empregadas e babás salvadoras têm suas próprias casas para limpar, seus próprios filhos para olhar. (Uma das soluções, claro, é que tanto as patroas quanto as empregadas contem com a participação dos companheiros e dos filhos. Se todo mundo dividir o trabalho doméstico, não fica tão pesado para ninguém).

Aqui, dou um passo atrás no debate. De certa forma, torna-se quase desnecessário discutir se é válido ter, ou não, uma faxineira. O próprio desenvolvimento econômico vai dando conta da situação: à medida que inflaciona o mercado das empregadas, menos gente vai poder ter acesso a esse serviço. E, portanto, ao dilema do trabalho doméstico. Não adianta muito reclamar: o serviço vai ficar mais caro (e é bom que assim seja; diminui o enorme buraco que existe entre as remunerações no país). Quem é mais pobre nunca pôde ter faxineira, quem é mais rico sempre poderá ter, independente do custo. A questão mesmo, o dilema, fica na área cinzenta do meio, nas pessoas que podem ter ou não, conforme suas prioridades. Com o aumento do preço cobrado pelas faxineiras, essa área cinzenta está ficando menor, e isso está deixando muita gente brava. Sim, pois quem gosta de perder privilégios?

E aí é preciso achar soluções com as quais a gente não se preocupava antes (embora devesse). Arrumar formas eficazes de manter a casa, formas mais fáceis de fazer as coisas. Roupas que não precisem ser passadas, por exemplo (sempre brinco com minha mãe que ela é da última geração que passava lençol…). Produtos de limpeza mais eficazes – sem que isso signifique poluir mais o ambiente. Ter menos coisinhas, bricabraques que peguem poeira. Lavar a louça após comer, para não juntar bichos e não engordurar a pia inteira. Não varrer todo dia. Pressionar a indústria por soluções que sejam práticas e não agressivas para a natureza, ao mesmo tempo. Organizar-se, dividir tarefas. Soluções que simplifiquem a vida – independente de quem irá executar o trabalho da casa, se a empregada, a dona de casa, o marido, os filhos.

Vejo pessoas que tiveram que deixar de ter empregadas dizendo que flexibilizaram seus padrões de limpeza, que agora não precisam ver tudo brilhando, impecável. Sim, afinal, é fácil ter mania de limpeza quando não é a gente que tem que limpar, né?

Não estou dizendo para as pessoas que podem arcar com o custo, cada vez mais alto, de ter uma faxineira, para dispensar essa ajuda. Na minha opinião – e sei que essa não é a opinião de todas as feministas – não existe diferença essencial entre contratar trabalho doméstico e contratar outros tipos de trabalho; se não cozinho sempre minha própria comida, porque deveria, necessariamente, limpar minha própria sujeira? Na minha visão, é assim: quer ter uma empregada? OK: mas faça a coisa direito, pagando um salário justo, dando os benefícios necessários, combinando previamente as tarefas, dando as condições de trabalho adequadas, sem abuso, sem desrespeito. O que estou questionando é como a ideia de ter alguém para fazer esses serviços por nós quase que se naturalizou, a ponto de gente jovem, saudável e forte não se sentir capaz de gastar umas horinhas do seu tempo a organizar a própria bagunça.

De um lado, sei a resposta: fomos criados assim. Ao morar com minha mãe e ter empregada, operava-se o Milagre da Roupa: de suja e espalhada no chão, ela aparecia dobrada, limpa e cheirosa no armário. A louça, então, só podia ser obra de uma Fada da Pia, que vinha de noite para deixar tudo brilhando (meu marido gosta muito de invocar essa figura, aliás, para me fazer ver que, se eu não fizer minha parte, alguém fará, e certamente não será a Fada). Penso na minha prima, que aos 18 anos lavou o banheiro pela primeira – e até então, única – vez há algumas semanas, sem ter muita ideia de como realizar essa complexa operação. E repito: não somos de família rica.

Pra sair dessa posição de privilégio, não tem jeito: é revisar as próprias atitudes, ver o quanto reclamamos de barriga cheia e o quanto podemos mudar, o quanto podemos contribuir pessoalmente para diminuir a exploração de outras mulheres e a desigualdade entre as pessoas. Parar de chamar a empregada de “folgada”, por exemplo, porque ela foi embora cedo, depois de fazer o serviço do dia, ou porque comeu alguma coisa da geladeira. Temos que valorizar o trabalho doméstico, que é sempre invisível, e não julgá-lo inferior apenas porque não é necessário diploma para exercê-lo. Afinal, as pessoas não deixam de estudar porque querem, mas porque as oportunidades não são oferecidas de forma igual para todos – não dá para dizer que nossa sociedade é meritocrática, né?

Minha irmã tem uma faxineira que vai à sua casa uma vez por mês. Antes de a moça vir, porém, minha irmã lava toda a louça, pois, conforme o acordo que elas têm, não é tarefa da empregada, contratada para a limpeza dos ambientes, lavar pratos e panelas. Achei isso de uma clareza impressionante, e bem diferente da postura de muita gente que já conheci, que uns três dias antes da vinda da faxineira já começa a empilhar um Everest de pratos. Mesmo se vamos contar com ajuda, é importante saber que isso é um privilégio, e não ser totalmente dependente dessa ajuda; saber cuidar de si mesmo é desejável, e cada vez mais, essencial, pois que alguns dos privilégios que sempre achamos serem nossos por direito tendem a desaparecer. E, mais uma vez, é bom que seja assim.

* Imagem de destaque: Broom de Kate Ter Haar no Flickr em CC, alguns direitos reservados.