O texto da Professora Luana

Texto de Luana Tolentino.

São cinco da manhã. Hora de acordar. Há tempo apenas para um banho rápido e um café. Até chegar à Escola Estadual Djalma Marques, na periferia de Ribeirão das Neves, serão dois ônibus e uma hora de viagem. Depois desse longo percurso é preciso andar um pouco mais pelas ruas sem asfalto do bairro Florença. A paisagem predominante é a de casas inacabadas, esgoto a céu aberto, pequenos comércios e muitas, muitas igrejas de variadas denominações.

O Djalma é uma escola nova, tem pouco mais de quatro anos. Logo à entrada vê-se a deterioração do prédio. Vidros e portas quebradas. Nas salas de aula a situação se repete com as mesas e cadeiras. A quadra ainda não ficou pronta. Segundo a coordenadora pedagógica, a biblioteca foi criada apenas para que houvesse o cargo de bibliotecária, e os poucos livros que tem devem ficar sempre trancados. A escola conta com câmeras por todos os lados para reforçar a segurança.

Escola de Ensino Fundamental Roberto Mubarac. Foto: Agência de Notícias do Acre, no Flick em CC, alguns direitos reservados.

Sete da manhã. Na sala dos professores entre as conversas, a insatisfação pelo descaso das autoridades com a educação, os problemas do dia anterior, e pedidos de proteção para mais um dia de aula. O sino toca. Os alunos sabem que precisam formar filas para a oração do Pai Nosso. É necessária uma longa espera. Fico em dúvida sobre quem fala mais: a coordenadora aos berros exigindo silêncio ou os alunos dispersos, sem muito interesse em rezar a oração que o Senhor os ensinou. Finalmente a oração é feita e as turmas são conduzidas pelos professores até a sala de aula. Até às 11:30 serão cinco turmas: quinta, sexta, sétima e oitavas séries, num total de quase 200 alunos.

Indisciplina, desinteresse e agressões fazem parte do cotidiano do Djalma. De quem é a culpa? Como disse o Ferreira Gullar “Uma sociedade fundada sobre a injustiça educa para a injustiça.” Entro na sala da 701. Uma turma com 40 alunos. A mais cheia, a mais bagunceira, a mais difícil, enfim, a mais tudo. De que forma sensibilizar esses alunos provenientes de famílias desestruturadas, expostos de forma cruel às mazelas sociais, sem perspectivas, sedentos de carinho e afeto? Penso que Dom Pedro II esteja muito distante deles, talvez uma das causas do desinteresse pelas aulas. Resolvo então dar uma pausa no conteúdo e levo para sala de aula “Luana”**, crônica que narra a violência urbana que assola os jovens das periferias do Brasil.

Distribuo o texto e ouço reclamações quanto ao tamanho. Insisto para que eles leiam. Encontro espaço para falar da importância do ato de ler e digo que o texto é muito bacana, que eles vão gostar. Não consigo acreditar no que vejo. Todos os alunos lendo. Alguns têm dificuldade na leitura. Outros mais afoitos interrompem a leitura a todo o momento, querendo saber se aquela “Luana” sou eu. Não respondo. Peço somente que eles continuem a leitura. Percebo que em cada parágrafo os alunos parecem estar vendo/ouvindo/vivendo aquilo tudo. “Luana” é real, “Luana” está próxima, certamente ao lado de cada um deles. Ao final da leitura um misto de incredulidade e tristeza: “Nossa, que triste professora, a Luana morreu”.

Iniciado o debate acerca do texto a maioria está ansiosa para falar. Ora Luana é culpada, ora inocente. É difícil contê-los. É difícil conter-me. Fico emocionada. Pela primeira vez em dois meses consigo me aproximar dos meninos, fazer com que eles participem da aula. Como na escola os materiais são precários, nem sempre é possível deixar os textos com os alunos. Dessa vez não teve jeito, alguns pediram que deixasse o texto com eles.

Tive a sensação de estar começando uma longa caminhada. Não posso desistir. Acredito que uma educação pública de qualidade é possível e que um dia nossos governantes passarão a tratar nós professores e os alunos como prioridade. Quimera, utopia, ilusão? Ainda não sei. Prefiro acreditar que nem tudo está perdido.

Ps: Escrevi este texto em agosto de 2008, logo que comecei a lecionar. De lá para cá, pouca coisa mudou. Mas uma coisa é certa: o último parágrafo do texto continua dando o tom do meu trabalho como docente.

Autora

Luana Tolentino é mulher, negra, canhota, gêmea univitelina.

* “Luana” foi publicado no livro “Cada Tridente em seu lugar” de Cidinha da Silva, pela Mazza Edições.