Aborto, de quem é a decisão final?

Texto escrito em parceria com Maysa Luz.

Maria e José são um casal que poderia fazer inveja a muitos. Cirurgiões competentes, inteligentes e bem sucedidos. Ela está especializando-se em cirurgia cardíaca e é a mais notável aluna da residência médica. Ele, especialista em traumas, recém-chegado do Iraque, acaba de ser empossado chefe do setor de cirurgia do hospital em que ambos trabalham. Um casal apaixonado, que divide não apenas o amor pela medicina, mas também a passagem por experiências traumáticas, o que faz com que se desenvolva uma forte relação de cumplicidade.

Entretanto, eles estão em crise. Maria sempre soube que não queria ter filhos. José tem o sonho de ser pai. Quando uma gravidez indesejada acontece, ela decide fazer um aborto. José protesta vigorosamente, mas decide apoiar a decisão da esposa e a acompanha durante o procedimento. Sim, vivendo em um país em que o aborto é legal, Maria pode decidir o que sempre quis para sua vida. Porém, ao decidir interromper a gravidez, dá à luz um elefante: o casal que sempre se entendeu muito bem, dentro e fora da cama, não conversa mais, até que a falta de diálogo explode na frente de amigos, quando José acusa Maria de ter matado seu filho.

Cristina e Owen da série americana Grey's Anatomy. Interpretados pela atriz Sandra Oh e pelo ator Kevin McKidd.

Você talvez conheça essa história. Maria e José são duas personagens da série americana Grey’s Anatomy, de grande sucesso em todo mundo, já em sua oitava temporada. Cristina Yang e Owen Hunt são os personagens da ´serie que vivem esse dilema. Você talvez conheça essa história fora da tela: o homem, por saber-se metade da concepção do feto, requer para si o direito de opinar e até decidir o futuro da gestação.

Mas será que ser a fonte de metade dos genes da criança realmente dá ao homem o direito de decidir? Obviamente, não deveria haver distinção entre os cuidados e o tempo que pais e mãe devem dedicar aos seus filhos, mas quando se trata da gravidez há outros fatores. Ela muda a vida, o corpo, a psiquê feminina de maneira muito mais devastadora que a masculina. Homens podem ser excelentes pais. Devem — ou deveriam — assumir para si a tarefa de cuidar da criança após o nascimento. Mesmo assim nunca será o mesmo, pois a natureza foi desigual. A grande maioria dos homens jamais sentirão enjôos matinais. Jamais sentirão uma criança mexendo dentro de si, uma contração, a queimação no seio quando o leite começa a descer. Não é no corpo dos homens que o feto se desenvolve e, portanto, nenhum homem corre os riscos de uma gravidez ou sente seus efeitos diretos. Nenhum homem jamais será capaz de entender toda a complexidade que esse período envolve, a ponto de poder dizer o que a mulher que está gestando um feto com metade de seus genes deve fazer. Essa prerrogativa é, ou deveria ser, exclusivamente da mulher. Há uma cena na oitava temporada em que Meredith explica para Owen porque uma mulher não deve ser forçada a ter um filho que não deseja. Sofre a mulher e também sofre a criança.

Se perguntarmos às pessoas: quem tem direito de decidir o que pode ser feito com o corpo de uma pessoa adulta e mentalmente capaz? Somente ela ou outras pessoas? Provavelmente, grande parte irá concordar que somente ela pode decidir o que será feito de seu corpo. Curioso é que na realidade essa regra geral, que se refere a PESSOAS, todas elas, parece não se estender às pessoas do sexo feminino. Há pessoas que acham que se uma mulher sai com uma roupa curta na rua, um homem tem justificativa para estuprá-la, ou seja, para decidir o que será feito com o seu corpo. Há um número ainda maior de pessoas que acha que se uma mulher engravida, ela deve obrigatoriamente ouvir a igreja, a família, o progenitor e levar a gravidez adiante, mesmo sem desejar ficar grávida ou ter um filho. Criminalizar o aborto significa permitir que outras pessoas ou o Estado decidam o que será feito com o corpo da mulher.

Quando os defensores da ilegalidade do aborto dizem que o feto é vida e que, portanto, deve ser preservada a todo custo, comparando o aborto a um assassinato, esquecem-se de dizer que além de esse ser um conceito que muda ao gosto do freguês, essa “vida” depende exclusivamente, integralmente, de uma outra vida para existir. Não há feto, até os seis meses de gestação em média, que sobreviva sem o suporte do corpo feminino. Portanto, não há como um feto desenvolver-se até se tornar um bebê de fato sem depender da disponibilidade da mulher para gerá-lo. E quem pode decidir se deve ou não dispor seu corpo para gerar esse feto? Quem deve decidir o que será feito do corpo da mulher: a própria mulher a igreja, o Estado, a sociedade, a família ou progenitor?

Cristina e Owen da série americana Grey's Anatomy. Interpretados pela atriz Sandra Oh e pelo ator Kevin McKidd.

Ao que parece, foi o que faltou a Owen entender. Apesar de aceitar, por amor, que a sua mulher tenha optado pela interrupção da gravidez, de segurar sua mão durante o procedimento, de se dispor a continuar com ela apesar de saber que isso significaria a impossibilidade da realização do seu sonho paterno, Owen não compreendeu que era direito único e exclusivo de Cristina decidir. Que Cristina não matou seu filho, porque o que havia em seu útero naquele momento era um feto, que poderia tornar-se filho, mesmo antes de nascer, caso vínculos fossem criados, mas que até então era apenas um feto. Que ela não cometeu nenhum crime, nenhum pecado, nenhuma imoralidade. Que ela apenas exerceu seu direito legítimo –– que deveria ser legítimo para todas as mulheres — de decidir o que fazer com seu próprio corpo.

No caso de Cristina e Owen, no meio da crise surge outra questão. Ele fala para ela que a mulher precisa ter uma razão para não querer ter um filho, que não existe isso de simplesmente não querer. Dessa maneira, mais uma vez ele não respeita uma decisão que é de Cristina, que impacta diretamente em sua vida e em seu corpo. É uma pena que Owen tenha sonhos diferentes dos de Cristina, mas assim como ela escolheu, ele também precisa fazer as escolhas de sua vida. Continuar ou não casado, tendo a certeza de que ela não quer ter filhos.

[+] Grey’s Anatomy: Unaccompanied Minor (07×22) por Simone Miletic.