O discurso da culpa: obesidade, distúrbios mentais e violência contra a mulher

Barbara Mentalez, que escreve no blog Mental Box, nos enviou esse texto para publicarmos e iniciou o diálogo sobre as questões aqui tratadas no post: Uma questão de peso.

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Texto de Barbara Mentalez*

Olá, muito prazer, sou Barbara Mentalez, uma mulher gorda. Não forte ou gordinha, gorda mesmo. Meu atual índide de massa corporal se situa na faixa de obesidade de grau I, numa escala que vai até III. Há menos de um ano e meio esse número era de no máximo 22, exatos dez pontos a menos. O que aconteceu? Deixei de fazer atividade física em excesso para me tornar sedentária, me dediquei ao consumo desenfreado de batata frita, azeite, macarrão, manteiga, pão, pizzas e afins. Resumindo, a bulimia que me acompanhou por dois anos se transformou em compulsão alimentar.

Beth Ditto, vocalista da banda Gossip. Foto: divulgação.

Estudos em andamento apontam para a tese de que não existem diversos tipos de distúrbios alimentares. Todos seriam faces da mesma moeda. Como se fossem intervalos de uma régua na qual os pacientes podem e transitam facilmente. O que acontece é que o distúrbio alimentar vai mundando suas características ao longo do tempo. Eu que antes era bulímica agora me encontro na categoria de compulsiva alimentar, sem provocar vômitos ou purgações. E existe a possibilidade que um dia eu me “torne” bulimica de novo ou venha a ser anoréxica.

Esses distúrbios, sobretudo a compulsão alimentar, costumam ser descritos como uma tremenda falta de vontade. Porque gordos são preguiçosos, comem sem parar, não se amam, são em tese culpados por serem desse jeito pois lhes falta força de vontade para reagir, para tomar uma atitude face ao excesso de peso. Isso lhe soa familiar? Pessoas com distúrbios ou doenças mentais (coloquemos nesses termos) são frequentemente acusadas de falta de vontade, de falta de amor próprio. São inundadas por discuros de ódio e culpa.

Porque comer como a gente come devia dar culpa não é. Só que não. É preciso entender que, assim como não somos culpados por sermos bipolares ou qualquer coisa que o valha, também não é uma questão de vergonha na da cara sofrer de compulsão alimentar e por causa disso sofrer de obesidade. Não posso dizer que minha vida é mais fácil agora que sofro de compulsão, mas é muito mais fácil do que ser magra e viver indo pro banheiro mesmo após de comer uma folha de alface. Sim é verdade, fiz isso porque me sentia muito culpada, inúmeras vezes.

Essa culpa também se coloca para quem é vítima de violência, sobretudo em crianças e mulheres. Somos culpadas de usar a roupa errada, de não termos força de vontade para largar o marido violento, de gostar de sermos agredidas. Ouço isso o tempo todo de minha mãe. Ela diz: essa mulher merece sofrer porque não faz nada para mudar. O mesmo que ouvimos quando gordos e quando pacientes psiquiátricos. Falas que são de uma desumanidade monstruosa.

Beth Ditto, vocalista da banda Gossip. Foto de Robert Maxwell/The Originals do New York Times.

Não quero me fazer de coitada e se digo o que vou dizer é para pensarmos não em um caso particular mas na estrutura da coisa: imaginemos o caso de uma bipolar que tem distúrbios alimentares, não consegue trabalhar e sofre agressão em casa. Colocando assim parece uma superposição artificialesca mas o modus operandi de cada camada de problema é tratada de forma muito semelhante. A culpa é sempre da vítima, lhe falta ânimo, vergonha na cara Fatores externos que ela não pode controlar não são tomados em conta.

E o que fazer com isso? O meu conselho é tomar isso como fonte de empoderamento, essa coisa que as feministas tanto gostam de falar. Não somos culpados por termos distúrbios alimentares, de sermos gordos ou de sofrermos abusos de qualquer sorte. Isso não quer dizer que não podemos fazer algo para mudar. Significa apenas que não vale a pena comprar o discurso de ódio e culpa porque eles não nos cabem. Literalmente. Acho que é por isso que a gravidez da Adele surpreendeu meio mundo. Ela deveria se sentir culpada, jamais deveria estar ocupada sendo feliz.

*Barbara Mentalez, uma personagem real de ficção. Atéia e bipolar, não necessariamente nessa ordem.