Não somos (seremos) vítimas

O feminismo é comumente acusado de ser vitimista ou de sempre colocar as mulheres na condição de vítimas. Na verdade, essa espécie de acusação ou rótulo não é feita somente às feministas, mas a qualquer movimento social que pretenda expor e debater privilégios pertencentes a determinados grupos sociais.

“Ninguém gosta de uma vítima”, dizem por aí. E, quando essa “vítima” vem a público relatar a violência que sofre, falar dos direitos que lhe são negados, dos privilégios pertencentes aqueles que impõem contra si a violência, a resposta geralmente vem em forma de mais ódio e violência contra a atrevida “vítima” que não cumpriu esse seu papel…

Mas de que fala, então, o feminismo? Somos ou não somos vítimas?

Como já é de costume, o enfoque desse texto será o jurídico, mais especificamente o da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Quero usar um ponto muito específico da Lei para falar desse suposto vitimismo de que somos rotuladas.

Mulheres realizam ato em defesa da Lei Maria da Penha em 2010. Foto de Marcello Casal Jr./Agência Brasil.

Lei Maria da Penha: origens e interpretação

Antes de tudo, quero ressaltar algo que por vezes é esquecido no meio jurídico. A Lei Maria da Penha não foi presente de um legislador de bom coração e cumpridor de imposições internacionais. Ao contrário do que é lição comum nos livros jurídicos, a Lei Maria da Penha é o resultado da luta e esforço de grupos feministas, que através da formação de um consórcio de ONGs que incluía diversos grupos (CEPIA, CFEMEA, AGENDE, ADVOCACI, CLADEM/IPÊ, THEMIS) deu força ao debate [1].

Portanto, o critério de análise e interpretação da referida lei deve ter por base o feminismo. Deve partir da questão de gênero, reconhecendo que o direito (re)produz as diferenças de gênero na sociedade, quando não cria suas próprias. Assim, criar leis, direitos e garantias que reconheçam essas diferenças não é suficiente. É preciso efetivar a correspondência entre esses direitos e a prática jurídica, os valores e comportamentos sociais; incluindo aí o próprio sentimento de titularidade desses direitos.

A Lei Maria da Penha deve ser interpretada em um contexto de constituição de um novo campo do poder. Ademais, deve ser um dos caminhos para a introdução do método feminista no direito [2]. O uso do direito (nessa matéria, especialmente)  deve ser direcionado a discutir os significados de gênero.

 “O gênero organiza a vida social, dá significado à dimensão do poder, estrutura a divisão sexual do trabalho. As doutrinas jurídicas são criadas em um contexto social permeado pelo gênero, por relações econômicas e raciais, pela divisão sexual do trabalho e pela subjeticidade dos doutrinadores envolvidos no processo. (…) o genero, no direito, atua como uma estratégia criadora de gênero ou como uma tecnologia de gênero”. [3]

Interpretação feminista no Direito

É necessário que algumas mudanças ou deslocamentos no discurso do Direito sejam feitas, de forma a garantir essa interpretação feminista ou o método feminista no Direito. E aqui chego ao ponto que queria: a Lei Maria da Penha, ao tratar da mulher e da violência doméstica, abandona a expressão “vítima”, substituindo-a pela expressão “mulher em situação de violência doméstica”. A escolha pode parecer preciosismo, eufemismo ou apenas um sinônimo. Não é.

A expressão escolhida e utilizada diz muito sobre a direção da Lei Maria da Penha, sobre como se quer tratar a mulher em seu contexto. O uso de “vítima”, conforme comentado por Carmen Hein de Campos, “coloca a mulher em situação passiva”. Já a expressão “mulher em situação de violência doméstica”, realiza um deslocamento discursivo e a coloca em um lugar diferente “em um lugar de transição de uma situação vitimizante para a de superação”.

Qual a importância dessa modificação? Como já disse no texto “Direito e Gênero: entre teoria e realidade“, as dicotomias de gênero são um retrato da sociedade patriarcal e uma delas é aquela que contrapõe sujeito e objeto, correspondentes ao masculino e o feminino. O método feminista no Direito procura reconhecer e introduzir a mulher como sujeito. A expressão em questão é parte disso [4].

“a mudança operada pela lei é mais que um mero recurso linguístico e tem por objetivo retirar o estigma contido na categoria vítima. Aliás o termo revela a verdadeira complexidade da situação de violência doméstica, para além dos preceitos classificatórios e dicotomias do direito penal ortodoxo. A expressão mulheres vítimas de violência foi muito ulitizada pelo feminismo na década de 80 e, de certo modo, seu uso aconteceu de forma acrítica. O próprio feminsimo revisitou essa questão e percebeu que esta forma de adjetivação colocaria as mulheres na posição de ´objeto´ da violência, sem autonomia (ou com autonomia reduzida) e no lugar de um não sujeito de direitos. A crítica fez, inclusive, com que  algumas feministas americanas utilizassem o termo “mulheres sobreviventes da violência doméstica”. No entanto, essa categoria não ganhou muitas adeptas no Brasil. A expressão “mulheres em situação de violência” foi igualmente contestada por autores que justificam que o termo remeteria ao do menor em situação irregular, circunstância que indicaria a mulher como um sujeito deficitário em sua capacidade jurídica. No entanto, superando a crítica, a expressão “mulheres em situação de violência” foi consolidade e indica a recuperação da condição de sujeito. Ao mesmo tempo, a expressão permite perceber o caráter transitório desta condição, fato que projeta o objetivo da Lei, que é a superação da situação MOMENTÂNEA de violência em que vivem as mulheres”. [5]

Não se trata apenas de uma mudança terminológica. A mudança é, e deve ser, conceitual e prática. Entender que a mulher em situação de violência doméstica é um sujeito e não uma vítima é uma forma de empoderamento. E, assim, uma forma de contribuir para que tal situação seja por ela superada. Por ela e com ela. Porque a política criminal que reconhece na mulher apenas a vítima e não o sujeito, costumeiramente, constrói-se de modo a substituir sua vontade e autonomia pela dita proteção do Estado ou, pior, pela tutela do Estado. E desse modo mantem a ideia de ser ela vulnerável e frágil.

Interessante, nesse ponto, o debate no Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424, que discutiu a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Como se pode acompanhar no vídeo, o Ministro Marco Aurélio usa a expressão “vulnerável” para definir a mulher, termo que é logo contestado pela Ministra Carmen Lúcia.

Tutelada pelo Estado, a mulher vítima é colocada no polo passivo da relação processual e sua vontade é, assim, supostamente “representada” pelas manifestações do órgão acusador. O critério não deve ser de tutela, mas de igualdade, garantia de direitos e empoderamento.

 “O direito penal e processual penal nomina como vítimas aquelas pessoas que sofrem uma ação delituosa ou se encontram no polo passivo da relação processual. (…) no entanto, o termo vítima foi bastante criticado pelas próprias feministas, uma vez que colocava as mulheres em situação de passividade frente ao outro. A mudança operada pela lei revela o abandono do lugar vitimizante e o caráter transitório dessa condição (…) expressa o rompimento com termos estigmatizantes” [6]

Dessa forma, considerar o uso do termo como critério de interpretação e a necessidade de reconhecimento da mulher como sujeito é a forma correta de situar o Direito e, especificamente, a Lei Maria da Penha como instrumento de empoderamento das mulheres. Retirando-lhe do lugar de vítima e colocando-a no lugar que lhe cabe: o de sujeito.

Em qualquer que seja o campo em que se discute o feminismo, acredito em seu caráter empoderador e não-vitimista. Nossa voz não quer servir ao vitimismo, mas a tornar visível a situação de quem sofre com a violência. A ideia é que toda e qualquer mulher tenha a garantia de uma vida livre de violência. Que a violência doméstica seja uma situação da qual todas possam se livrar, por meio dos instrumentos jurídicos disponíveis e do reconhecimento da mulher como sujeito. Instrumentalizar o direito para inclui-la como tal, como é o caso da Lei Maria da Penha, é um passo importante, mas que deve ser acompanhado por uma forma de pensar que tenha as bases aqui referidas.

E, se falo no campo do Direito, parece-me que interpretá-lo a partir desse enfoque é fundamental para a mudança de paradigma. É a Lei Maria da Penha, com sua característica de ser um verdadeiro caso de advocacy feminista, a principal ferramenta nessa tarefa.

Referências:


[1] CAMPOS, Carmen Hein de. “Razão e Sensibilidade: teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha”. In CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 1-12, p. 5

[2] BASTERD, Leila Linhares. Advocacy Feminista, In CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 15.

[3] CAMPOS, Carmen Hein de. “Razão e Sensibilidade: teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha”. In CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 1-12., p. 4.

[4] Idem, p. 6.

[5] CAMPOS, Carmen; CARVALHO, Salo de. Tensões atuais entre a Criminologia Feminista e a Criminologia Crítica: a experiência brasileira, In CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 146.

[6] CAMPOS, Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 179.

*Agradeço, como sempre, o pitaco da Luciana Nepomuceno na revisão do texto. =) (e da Bianca Cardoso, a revisora mais paciente desse mundo)