O feminismo é comumente acusado de ser vitimista ou de sempre colocar as mulheres na condição de vítimas. Na verdade, essa espécie de acusação ou rótulo não é feita somente às feministas, mas a qualquer movimento social que pretenda expor e debater privilégios pertencentes a determinados grupos sociais.
“Ninguém gosta de uma vítima”, dizem por aí. E, quando essa “vítima” vem a público relatar a violência que sofre, falar dos direitos que lhe são negados, dos privilégios pertencentes aqueles que impõem contra si a violência, a resposta geralmente vem em forma de mais ódio e violência contra a atrevida “vítima” que não cumpriu esse seu papel…
Mas de que fala, então, o feminismo? Somos ou não somos vítimas?
Como já é de costume, o enfoque desse texto será o jurídico, mais especificamente o da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Quero usar um ponto muito específico da Lei para falar desse suposto vitimismo de que somos rotuladas.

Lei Maria da Penha: origens e interpretação
Antes de tudo, quero ressaltar algo que por vezes é esquecido no meio jurídico. A Lei Maria da Penha não foi presente de um legislador de bom coração e cumpridor de imposições internacionais. Ao contrário do que é lição comum nos livros jurídicos, a Lei Maria da Penha é o resultado da luta e esforço de grupos feministas, que através da formação de um consórcio de ONGs que incluía diversos grupos (CEPIA, CFEMEA, AGENDE, ADVOCACI, CLADEM/IPÊ, THEMIS) deu força ao debate [1].
Portanto, o critério de análise e interpretação da referida lei deve ter por base o feminismo. Deve partir da questão de gênero, reconhecendo que o direito (re)produz as diferenças de gênero na sociedade, quando não cria suas próprias. Assim, criar leis, direitos e garantias que reconheçam essas diferenças não é suficiente. É preciso efetivar a correspondência entre esses direitos e a prática jurídica, os valores e comportamentos sociais; incluindo aí o próprio sentimento de titularidade desses direitos.
A Lei Maria da Penha deve ser interpretada em um contexto de constituição de um novo campo do poder. Ademais, deve ser um dos caminhos para a introdução do método feminista no direito [2]. O uso do direito (nessa matéria, especialmente) deve ser direcionado a discutir os significados de gênero.
“O gênero organiza a vida social, dá significado à dimensão do poder, estrutura a divisão sexual do trabalho. As doutrinas jurídicas são criadas em um contexto social permeado pelo gênero, por relações econômicas e raciais, pela divisão sexual do trabalho e pela subjeticidade dos doutrinadores envolvidos no processo. (…) o genero, no direito, atua como uma estratégia criadora de gênero ou como uma tecnologia de gênero”. [3]
Interpretação feminista no Direito
É necessário que algumas mudanças ou deslocamentos no discurso do Direito sejam feitas, de forma a garantir essa interpretação feminista ou o método feminista no Direito. E aqui chego ao ponto que queria: a Lei Maria da Penha, ao tratar da mulher e da violência doméstica, abandona a expressão “vítima”, substituindo-a pela expressão “mulher em situação de violência doméstica”. A escolha pode parecer preciosismo, eufemismo ou apenas um sinônimo. Não é.
A expressão escolhida e utilizada diz muito sobre a direção da Lei Maria da Penha, sobre como se quer tratar a mulher em seu contexto. O uso de “vítima”, conforme comentado por Carmen Hein de Campos, “coloca a mulher em situação passiva”. Já a expressão “mulher em situação de violência doméstica”, realiza um deslocamento discursivo e a coloca em um lugar diferente “em um lugar de transição de uma situação vitimizante para a de superação”.
Qual a importância dessa modificação? Como já disse no texto “Direito e Gênero: entre teoria e realidade“, as dicotomias de gênero são um retrato da sociedade patriarcal e uma delas é aquela que contrapõe sujeito e objeto, correspondentes ao masculino e o feminino. O método feminista no Direito procura reconhecer e introduzir a mulher como sujeito. A expressão em questão é parte disso [4].
“a mudança operada pela lei é mais que um mero recurso linguístico e tem por objetivo retirar o estigma contido na categoria vítima. Aliás o termo revela a verdadeira complexidade da situação de violência doméstica, para além dos preceitos classificatórios e dicotomias do direito penal ortodoxo. A expressão mulheres vítimas de violência foi muito ulitizada pelo feminismo na década de 80 e, de certo modo, seu uso aconteceu de forma acrítica. O próprio feminsimo revisitou essa questão e percebeu que esta forma de adjetivação colocaria as mulheres na posição de ´objeto´ da violência, sem autonomia (ou com autonomia reduzida) e no lugar de um não sujeito de direitos. A crítica fez, inclusive, com que algumas feministas americanas utilizassem o termo “mulheres sobreviventes da violência doméstica”. No entanto, essa categoria não ganhou muitas adeptas no Brasil. A expressão “mulheres em situação de violência” foi igualmente contestada por autores que justificam que o termo remeteria ao do menor em situação irregular, circunstância que indicaria a mulher como um sujeito deficitário em sua capacidade jurídica. No entanto, superando a crítica, a expressão “mulheres em situação de violência” foi consolidade e indica a recuperação da condição de sujeito. Ao mesmo tempo, a expressão permite perceber o caráter transitório desta condição, fato que projeta o objetivo da Lei, que é a superação da situação MOMENTÂNEA de violência em que vivem as mulheres”. [5]
Não se trata apenas de uma mudança terminológica. A mudança é, e deve ser, conceitual e prática. Entender que a mulher em situação de violência doméstica é um sujeito e não uma vítima é uma forma de empoderamento. E, assim, uma forma de contribuir para que tal situação seja por ela superada. Por ela e com ela. Porque a política criminal que reconhece na mulher apenas a vítima e não o sujeito, costumeiramente, constrói-se de modo a substituir sua vontade e autonomia pela dita proteção do Estado ou, pior, pela tutela do Estado. E desse modo mantem a ideia de ser ela vulnerável e frágil.
Interessante, nesse ponto, o debate no Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424, que discutiu a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Como se pode acompanhar no vídeo, o Ministro Marco Aurélio usa a expressão “vulnerável” para definir a mulher, termo que é logo contestado pela Ministra Carmen Lúcia.
Tutelada pelo Estado, a mulher vítima é colocada no polo passivo da relação processual e sua vontade é, assim, supostamente “representada” pelas manifestações do órgão acusador. O critério não deve ser de tutela, mas de igualdade, garantia de direitos e empoderamento.
“O direito penal e processual penal nomina como vítimas aquelas pessoas que sofrem uma ação delituosa ou se encontram no polo passivo da relação processual. (…) no entanto, o termo vítima foi bastante criticado pelas próprias feministas, uma vez que colocava as mulheres em situação de passividade frente ao outro. A mudança operada pela lei revela o abandono do lugar vitimizante e o caráter transitório dessa condição (…) expressa o rompimento com termos estigmatizantes” [6]
Dessa forma, considerar o uso do termo como critério de interpretação e a necessidade de reconhecimento da mulher como sujeito é a forma correta de situar o Direito e, especificamente, a Lei Maria da Penha como instrumento de empoderamento das mulheres. Retirando-lhe do lugar de vítima e colocando-a no lugar que lhe cabe: o de sujeito.
Em qualquer que seja o campo em que se discute o feminismo, acredito em seu caráter empoderador e não-vitimista. Nossa voz não quer servir ao vitimismo, mas a tornar visível a situação de quem sofre com a violência. A ideia é que toda e qualquer mulher tenha a garantia de uma vida livre de violência. Que a violência doméstica seja uma situação da qual todas possam se livrar, por meio dos instrumentos jurídicos disponíveis e do reconhecimento da mulher como sujeito. Instrumentalizar o direito para inclui-la como tal, como é o caso da Lei Maria da Penha, é um passo importante, mas que deve ser acompanhado por uma forma de pensar que tenha as bases aqui referidas.
E, se falo no campo do Direito, parece-me que interpretá-lo a partir desse enfoque é fundamental para a mudança de paradigma. É a Lei Maria da Penha, com sua característica de ser um verdadeiro caso de advocacy feminista, a principal ferramenta nessa tarefa.
Referências:
[1] CAMPOS, Carmen Hein de. “Razão e Sensibilidade: teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha”. In CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 1-12, p. 5
[2] BASTERD, Leila Linhares. Advocacy Feminista, In CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 15.
[3] CAMPOS, Carmen Hein de. “Razão e Sensibilidade: teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha”. In CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 1-12., p. 4.
[4] Idem, p. 6.
[5] CAMPOS, Carmen; CARVALHO, Salo de. Tensões atuais entre a Criminologia Feminista e a Criminologia Crítica: a experiência brasileira, In CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 146.
[6] CAMPOS, Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 179.
*Agradeço, como sempre, o pitaco da Luciana Nepomuceno na revisão do texto. =) (e da Bianca Cardoso, a revisora mais paciente desse mundo)