Transviada contra a ordem sexual: má fé e vergonha

Texto de Tatiana Lionço*.

Após episódio de distorção de meus argumentos em um pronunciamento público na Câmara dos Deputados, ocasionado pela edição das falas e atribuição de legendas interpretativas a afirmações descontextualizadas, cá estou eu assistindo a um processo de difamação crescente associado ao meu nome na internet. Estava eu, há três meses atrás, desempenhando o meu papel social como pesquisadora no país e ativista no enfrentamento expresso da homofobia. É triste acompanhar essa disponibilidade à agressão e violação moral. Tenho aproveitado para descobrir blogs na rede em que se prega o ódio, a intolerância, o desrespeito à imagem das pessoas, a atribuição de valores como o da promiscuidade e o da anormalidade sexual a pessoas públicas que lutam contra a homofobia no país.

Como sou ativista em direitos sexuais, tenho sistematicamente pesquisado movimentos de desconstrução de estereótipos de gênero e também o que se denomina pós-pornografia. Tenho me interessado nos últimos anos tanto por biografias de pessoas consideradas indignas em suas práticas sexuais e em suas expressões da masculinidade e da feminilidade quanto acompanhando a produção imagética de profissionais do sexo que se tornaram ícones de seu tempo. Duas dessas personalidades são Annie Sprinkle e François Sagat, a quem eu escolho me referir diretamente nesta reflexão por terem sido apresentados em uma matéria de menção desqualificatória ao meu nome.

Annie Sprinkle é uma ex-atriz pornô que após três décadas de vida sexual com homens se apaixona por uma outra mulher. Indignaram-se por eu haver publicado um video do youtube em minha conta do facebook em que havia a sinalização de que o mesmo era impróprio para menores de idade. Caso desconheçam a minha idade, saibam que já faz tempo que eu passei desse limite da menoridade para a maioridade civil. Caso acreditem que apesar de terem já alcançado a maioridade civil seja inadequado assistir a um video sinalizado como impróprio para menores, o melhor seria não assistir. No video, não há cenas de sexo explícito, mas a narrativa de Annie Sprinkle sobre o seu trabalho sexual e seu ativismo. Nos conta como foi seu trabalho como atriz pornô e como redirecionou o seu trabalho em uma perspectiva feminista. Também aparece no video esclarecendo o seu desejo e do/a parceiro/a (Simone Ávila nos ajuda a entender as nuances das transmasculinidades em mulheres biológicas) pela procriação via inseminação artificial.

Apresentam também, na mesma matéria desqualificatória envolvendo o meu nome, uma foto em que eu estou recebendo uma lambida em minhas costas tatuadas por um famoso astro pornô, o François Sagat. Para quem não sabe, Sagat é um ícone gay da indústria pornográfica, mas um ícone justamente por se apresentar provocativamente associando a sua imagem visivelmente viril e masculina a adereços e vestimentas femininas. Eu tive a oportunidade de encontrá-lo pessoalmente em um show pornô que ele fez na minha cidade. Na ocasião, pedi ao fotógrafo que nos fotografasse e espontaneamente registramos a imagem, agora usada pela má-fé de cristãos fundamentalistas. Eu adoro a foto. Eu mesma a tornei pública em minha conta de facebook e agora o faço novamente. Somente eu posso decidir onde, quando e como publicar a minha própria imagem.

François Sagat no Brasil, 2012. Créditos da foto: Thum.

Talvez eu mesma esteja descobrindo que o meu trabalho é sexual, apesar de intelectual. Mas talvez seja isso mesmo: eu estou sendo associada moralmente a uma profissional do sexo. Isso, em si, não é difamatório. Eu defendo os direitos de profissionais do sexo, prostitutas ou putas, e lembro que no Brasil profissionais do sexo não agem necessariamente ilicitamente, a não ser no aliciamento e cafetinagem, passíveis de punição penal. Resgato aqui a história de Gabriela Leite, autora da autobiografia intitulada Filha, Mãe, Avó, Puta. Estou ciente de que ela foi reconhecida pelo seu esforço na articulação política das putas no Brasil com a titulação recebida de Doutora Honoris Causa. Causa justa, a da defesa de oprimidas e pessoas vulneráveis. Me parece uma causa bastante justa, tal como fez justiça Cristo em relação a Maria Madalena.

É bastante óbvio que eu mesma tenha me tornado objeto de difamação. Apesar de poder frustrar as expectativas alheias sobre a minha vida sexual, que prefiro manter privada segundo me garante a Constituição Federal, eu sou uma figura relativamente pública no enfrentamento da homofobia e luta pelos direitos sexuais no país. Já prestei isso que estão provavelmente entendendo como trabalho sexual ao Governo Federal, a organizações não-governamentais e também à academia brasileira, à ciência que produzimos no país. Uma puta federal e pública, uma transviada contra a ordem sexual machista, sexista, misógina, homofóbica, lesbofóbica, transfóbica e patriarcal.

É estranho pensar como um grupo de fervorosos cristãos pode ter se interessado tanto por François Sagat e por Annie Sprinkle. O meu interesse me parece bem mais compreensível. Me parece mais sensato, mais honesto, mais transparente. É estranho pensar que um grupo de fervorosos cristãos se interessem tanto por uma transviada contra a ordem sexual como eu, que tome seu tempo supostamente casto me dedicando tamanha atenção na atuação desqualificatória em nossa rede virtual. Cristãos, se quiserem saber mais sobre mim, leiam o que já escrevi sobre homofobia e educação. Leiam o que já escrevi sobre laicidade e ensino religioso nas escolas públicas. É um caminho mais interessante para pensarem sobre como tornar o mundo em que vivemos um lugar em que o ódio, a intolerância e a violência possam perder cada vez mais espaço.

Gostaria apenas de lembrar que, mesmo sendo uma suposta profissional do sexo que presta serviços ao Estado e à sociedade, eu nunca agi ilicitamente em meu ativismo político. A dignidade e a convicção de pertencer a uma luta por justiça é o que me mantém ágil e pronta para denunciar irregularidades, tais como previstas em nosso ordenamento legal e regras de sociabilidade real e virtual. Curiosamente, a minha pessoa é mencionada como potencializadora da infração moral, da pedofilia, do abuso. Não, não houve e nem haverá abuso sexual em meu nome, eu defendo direitos e redes de proteção contra a violência. Em nome de Deus estão cometendo abusos. Difamação, uso indevido da imagem, estupro da moral e da dignidade alheia. Eu, mesmo que fosse uma prostituta, não me envergonharia de mim mesma. Eu tenho vergonha é de pensar naquilo que fazem vocês, fundamentalistas cristãos, pessoas de má fé agindo em nome de Deus. Vocês me aproximam da vergonha. Na falta da sua, a vergonha é a minha, porque minha fé é justa e me indigno com as injustiças.

*Tatiana Lionço é doutora em Psicologia, professora de graduação e mestrado em Psicologia do UniCEUB e membro-fundadora da Cia. Revolucionária Triângulo Rosa.