Pais, deixem a sexualidade dos seus filhos em paz!

Posso dizer que, no que tange ao respeito pela minha sexualidade, fui uma menina de sorte. Meus pais criaram a mim e as minhas irmãs com bastante liberdade, sem policiamento. Mesmo quando criança, não houve repressões do tipo: “você não pode fazer isto porque é coisa de menino”. Na adolescência, nunca fui proibida de ir às festinhas, de “ficar” com os garotos, de namorar.

Enfim, não posso reclamar. Mas nem sempre é assim. Arrisco-me a dizer que, na maior parte das famílias, não é assim. Porque o que vemos é muita repressão e muito cerceamento às liberdades individuais de crianças e adolescentes. Mas o que esses pais ou cuidadores temem tanto?

Fica fácil entender isso quando olhamos para o componente cultural envolvido. Falando da nossa sociedade, podemos dizer que alguns conceitos são transmitidos de geração para geração, sem maiores questionamentos, seguindo a máxima de que “fazemos assim porque sempre foi assim”. Em relação ao gênero e à sexualidade, nossa cultura é caracteristicamente sexista, heteronormativa e cisnormativa. O que isso quer dizer? Resumidamente, essa cultura nos ensina que: 1) só há um tipo de constituição familiar possível — de um homem e uma mulher cissexuais e heterossexuais que se casam e têm filhos, que também deverão ser cis e heterossexuais, o que garante a continuidade do ciclo; 2) meninos não só podem como devem exercer livremente a sua sexualidade, devem ser “machões” e ativos; já as meninas devem ser passivas, resguardando a sua sexualidade ao máximo, mantendo-se puras e intactas, para que os meninos não deixem de respeitá-las e para que se tornem “moças para casar”.

Esses conceitos se desenvolvem desde muito cedo. A relação com o corpo, por exemplo, já pode ser percebida nas crianças pequenas. No geral, meninos e meninas se relacionam de formas diferentes com seus órgãos sexuais. (Neste parágrafo, especificamente, me refiro a crianças cissexuais.) O menino enxerga o seu pênis, frequentemente o toca, brinca com ele. Já a menina não visualiza sua vulva, a toca apenas para fazer a higiene, não sabe exatamente o que é a vagina. Nas crianças, o pudor pela exposição do pênis também é menor em relação à exposição da vulva. Não raro, meninos fazem “xixi” na frente de estranhos. Dessa forma, muitas meninas crescem sem conhecer o próprio corpo e achando que há “algo ali” que deve ser sempre escondido, preservado, intocado.

 

Foto de Clarice Maia Scotti, Marcha das Vadias de Belo Horizonte – 2012.

Esse senso atravessa a infância e se intensifica na adolescência. Quando as meninas tornam-se “mocinhas”, os cuidadores, mais do que nunca, se esforçam em reprimir a sexualidade delas. Muitas são impedidas de usar roupas muito justas ou curtas, outras são proibidas de sair de casa sem a companhia do pai ou de um irmão, outras, ainda, não podem ter encontros amorosos e, muito menos, namorar.

Os meninos, do contrário, são geralmente incentivados pelos cuidadores a expressarem sua sexualidade e a vislumbrarem o gênero feminino como possível “alvo” sexual (“Olha só, filho, que menina bonita! Dá um beijinho nela…”). Você pode se perguntar o que há de errado com nisso, afinal, crianças são inocentes. Não há nada de errado com isso, isoladamente; a questão é que, a partir daí, começa a se desenhar o policiamento em relação aos meninos. Sim, porque eles também não estão livres. Eles não podem ter modos ou gestos “afeminados”, não podem gostar de coisas ou brincadeiras “de menina”, não podem chorar ou demonstrar fraqueza e devem sempre, em todas as situações, manifestar interesse sexual pelo gênero feminino.

É o policiamento heteronormativo: “Não demora muito, vou dar umas Playboys pro meu filho olhar, pra ele logo ficar sabendo o que é bom”. Sim, eu ouvi isso de um pai, referindo-se ao seu filho — uma criança. E fiquei me perguntando: para ele saber o que é bom… bom para quem? Como é que alguém sabe o que é bom para seu filho em relação à sexualidade DELE?

Muitas vezes, quando chegam à adolescência, meninos são levados por amigos mais velhos ou pelos próprios cuidadores a um prostíbulo, para que se iniciem na vida sexual. Nada de errado com o fato de ir a um prostíbulo, se é isso que você quer, se essa decisão é SUA. Mas, não raro, esses meninos têm essa experiência ainda muito jovens, sem saber se é o que realmente querem.

E se o seu filho disser para você que não sente atração por meninas/mulheres, mas por meninos? Ou por ambos? Ou, ainda, que a sua identidade de gênero é feminina e não masculina?

“Ah, se fosse meu filho, eu dava uma surra tão bem dada que ele se consertava rapidinho”. Você já deve ter ouvido essa frase, dita por alguém se referindo a um adolescente homossexual. Sim, alguns pais pensam que homossexualidade é resultado de uma falha na educação, e que pode ser “consertada”, “corrigida” com uma surra, com um castigo ou através de proibições — por exemplo, impedindo-o de sair com os amigos, porque “deve ser culpa da má influência deles”. Além de não ter nenhum resultado, essas medidas só farão com que o adolescente se sinta desajustado, culpado, e tenha dificuldades de autoaceitação. Enfim, ele ficará infeliz. É isso que queremos?

Impor regras sobre a sexualidade e a generidade de outra pessoa é sempre uma forma de violência contra a liberdade individual. Mesmo que essa pessoa esteja sob a nossa tutela, mesmo que seja nosso filho, neto, enteado. É preciso saber diferenciar educação sexual de intromissão na sexualidade alheia. Nosso papel nesse sentido, como cuidadores, não deve ser o de regular ou culpabilizar, mas de orientar. Conversar muito, sempre; estar pronto para escutar, para esclarecer dúvidas; instruir para a prática do sexo com responsabilidade e segurança (evitando, assim, o contágio por doenças sexualmente transmissíveis ou uma gravidez indesejada); acompanhar o adolescente ao médico; e alertar, especialmente as crianças, sobre os perigos do abuso sexual por pessoas mais velhas.

E, neste Dia das Crianças, fica aqui um pedido para os cuidadores: deem aos seus filhxs o que mais importa — amor, respeito, e… deixem a sexualidade — e o gênero — delxs em paz!

Autora

Letícia Howes é produtora editorial, feminista em formação.