Pelo casamento entre um homem e uma mulher?!

Texto de Lettícia Leite.

Saindo um tanto apressada de um metrô aqui em Paris, a caminho de um encontro feminista que ocorria num bar no Marais (o bairro onde há uma grande concentração de bares voltados para o público LGBT), fui abordada por uma moça bem jovem, que ao me entregar um panfleto dizia: “Pour le mariage!” (Pelo casamento!). E eis que antes que ela concluísse sua frase: “Pour le mariage homme et femme!” (Pelo casamento entre um homem e uma mulher), eu já me encontrava com o panfleto na mão.

Meu cérebro, às vezes um tanto quanto lento, demorou uns dois segundos para processar a informação. Tratava-se de uma panfletagem para promover uma manifestação em prol do casamento civil entre um homem e uma mulher? Sim, tratava-se de uma propaganda da manifestação que aconteceu em Paris, no dia 13 de janeiro, em reação ao projeto de lei “Mariage et adoption pour tous” (Casamento e adoção para todos). Projeto que acabou de passar pelo Conselho de Ministros e, seguirá agora para discussão parlamentar. Fato é que, uma vez que “captei a mensagem”, imediatamente senti-me um tanto quanto agredida por ela e fui seguindo meu caminho por uma rua que estava cheia de jovens distribuindo este mesmo panfleto.

Resolvi, no entanto, guardá-lo para dar uma olhada nos argumentos usados pelas pessoas que lutam por uma causa que não me parece fazer muito sentido. Lutar pela manutenção do direito ao casamento civil entre um homem e uma mulher? Ele está ameaçado? Ou, dito de outro modo por uma amiga: “Afinal, por que se faria uma manifestação por um direito que está aí? Homens e mulheres podem se casar livremente!”. Eis que dois dias depois, o episódio do panfleto se repetiu, assim como o discurso que acompanhou sua tentativa de entrega numa rua aqui perto de casa. Mas não! Desta vez fui mais rápida e recusei recebê-lo! Ao invés de me sentir agredida, senti raiva. E, movida por estes sentimentos resolvi escrever para tentar elaborar um pouco a questão, e, por que não, compartilhar o “estado de coisas” na França. Daí a ideia de publicar o texto aqui neste espaço, para problematizar as questões partindo do meu espaço social de observação e ação: uma mulher feminista e lésbica.

Ainda fico um pouco perplexa com a maneira completamente covarde da qual certos grupos se valem para enunciar sua causa. Afinal, por que se dizer “pelo casamento entre um homem e uma mulher”? Se, o que se quer realmente dizer é: “somos contra o casamento entre dois homens ou entre duas mulheres”. Pois estes grupos são, de fato, contra a aquisição de direitos por parte de todas as pessoas! E, neste caso, de um direito, que se estendido para todos os casais, não ameaça em absoluto o direito adquirido que homens e mulheres já tem, há muito tempo, de casar, separar ou terem filhos, seja por meio de técnicas médicas ou por adoção. Ora, que fique claro que, no projeto proposto, está previsto apenas a regulamentação da adoção. Direito que o casamento civil, uma vez efetivado, automaticamente concederia. Isto quer dizer, que não está previsto qualquer regulamentação de programas de acompanhamento médico para casais de mulheres em que uma delas deseje realizar um tratamento para engravidar.

Mais estranho ainda, é que no panfleto ainda se tem um cuidado de esclarecer que não, não se trata de homofobia. Evidente! Pois os grupos alegam que o que querem é, apenas proteger a sagrada instituição do matrimônio (impedindo uma mudança que consideram como um abalo ao código civil), além de proteger as crianças, que não podem ser privadas do que entendem como natural: ter uma mãe e um pai.

Casal de lésbicas se beija em frente a pessoas que participam de manifestação contra o casamento gay e adoções por casais do mesmo sexo, em Marselha, na França. O movimento Alliance VITA protestava contra a provável adoção de uma lei, a ser assinada no dia 31 de outubro, autorizando o casamento gay. Foto de Gérard Julien/AFP.
Casal de lésbicas se beija em frente a pessoas que participam de manifestação contra o casamento gay e adoções por casais do mesmo sexo, em Marselha, na França. O movimento Alliance VITA protestava contra a provável adoção de uma lei, a ser assinada no dia 31 de outubro, autorizando o casamento gay. Foto de Gérard Julien/AFP.

Eles argumentam também, que a família formada por homens e mulheres reforça a coesão social (eu pergunto: uma família formada por duas pessoas do mesmo sexo promove a dissolução desta coesão?), e que o direito à adoção por casais constituídos por pessoas do mesmo sexo, ademais, induziria ao aumento da busca por técnicas de procriação médicas – tendo em vista que o atual número de crianças à espera de uma adoção é oficialmente menor que o número de casais que aguardam na fila por uma adoção. Ou seja, os casais heterossexuais poderiam ser levados a se submeter a tratamentos de fecundação artificiais graças ao inchaço nas filas de adoção, provocadas pela permissão da entrada de casais homossexuais.

Pergunto-me se essas pessoas ouviram, entre outras coisas, ao menos falar do número crescente de famílias monoparentais, em geral compostas por mães e filhos (ou eles também acham que elas seriam a causa da falta de coesão social)? Verificaram o perfil de pessoas que querem e podem ter acesso a métodos de fecundação artificiais que são extremamente caros? Essas pessoas não conhecem crianças ou adolescentes que cresceram tendo como referência parental duas mulheres ou dois homens. Essas crianças e adolescentes vivem como qualquer outra pessoa. Com problemas maiores ou menores que dependem das condições emocionais, dos espaços econômicos e sociais onde suas famílias circulam.

A manifestação do último dia 13 de janeiro, no entanto, foi também uma resposta à outra recente manifestação feita aqui, que ocorreu em 16 de dezembro de 2012 (e que contou com um número de participantes estimado em 90 mil pessoas). Manifestação que constituiu uma marcha à favor do casamento e do direito à adoação também para casais constituídos por pessoas do mesmo sexo — e não contra o casamento entre um homem e uma mulher. Ainda que exista sim, uma parte do movimento feminista francês (em grande número composto por lésbicas, a qual eu estimo ser minoriária), que considera um retrocesso a atual reivindicação LGBT pelo direito ao casamento e à adoção.

No entanto, neste caso, a ideia é que a instituição casamento seja completamente abolida, para que, dessa forma, o casamento deixe de estruturar grande parte da vida jurídica de duas pessoas que decidem compartilhar a vida. Porém, estamos falando aqui, de uma parcela do movimento feminista francês lésbico e/ou feminista anarquista. A luta pela abolição da instituição casamento não é o motor da discussão feminista, que, em linhas gerais, reflete sobre o casamento como um legado patriarcal, um instrumento de dominação masculina.

A luta feminista francesa não é, exclusivamente em prol da extinção do casamento, muito menos pela extinção do casamento homem-mulher. Mas, ainda que fosse, essa discussão sobre a abolição do casamento nem é sequer conhecida por estas pessoas que andam organizando estas marchas para defender o casamento entre homens e mulheres. Ainda bem! Porque se essa reflexão fosse de fato conhecida, eles certamente veriam aí um prato cheio para atacar um inimigo que sonha dia e noite em arruinar as suas sagradas famílias. Mas não, esse inimigo não existe.

A luta LGBT na França hoje é, sobretudo, por direitos efetivamente iguais para duas pessoas que decidam firmar juridicamente uma união. Como, por exemplo, dar acesso ao direito da adoção também para casais homossexuais. Pois, embora já exista por aqui o PACS (Pacte Civil de Solidarité), que é o acordo de união civil corrente desde 1999, que aceita a união entre pessoas do mesmo sexo e dá acesso a uma série de direitos civis —, este acordo não é um equivalente jurídico do casamento civil.

Curiosidade: o PACS — criado, como forma de oferecer alguns direitos à comunidade LGBT, na esteira das discussões sobre direitos hereditários por parte de muitos homens que tinham seus parceiros mortos em decorrência da AIDS — é atualmente realizado, em mais da metade dos casos, por casais heterossexuais. Muitos casais heterossexuais adotaram o PACS ao invés do casamento, porque é mais barato, rápido, e fácil de desfazer. Ou seja, se a instituição casamento, se o modelo tradicional de família, vem sendo ameaçado, não é por um plano “sórdido” das feministas ou da comunidade LGBT. É a própria sociedade francesa, em sua totalidade, que vêm optando por novos caminhos.

Capa da revista Elle francesa de janeiro de 2013. O editoral da revista deixa claro o apoio ao projeto "Mariage Pour Tout".
Capa da revista Elle francesa de janeiro de 2013. O editoral da revista deixa claro o apoio ao projeto “Mariage Pour Toutes”.

É bom lembrar que em outubro de 2012, o anteprojeto de lei, antes mesmo de chegar à forma de projeto, e antes até da sua apresentação (31/10/2012), causou dias antes (24/10/2012), uma massiva manifestação contrária, que fez com que pessoas saíssem de suas casas em nada mais nada menos do que 75 cidades por todo território francês! Felizmente, no dia 27 de janeiro acontecerá mais uma marcha feita pelas pessoas que são favoráveis ao casamento e à adoção para todos os casais.

Uma boa notícia é que o atual presidente, François Hollande, apesar de toda a onda conservadora que se levanta na França, reiterademente declara a sua posição, que é de que a promulgação desta lei deve ser vista como um avanço para toda a sociedade. A ministra da Família, Dominique Bertinotti, por sua vez, faz questão de frisar que a reivindicação do casamento e adoção por parte dos casais formados por parceiros do mesmo sexo, é afinal, bastante normativa. Uma vez que, o casal que obtenha o direito de se casar civilmente, passa a inscrever sua família num quadro jurídico. E, aos temerosos, ela acrescenta que não há nada de destrutivo nisto, trata-se apenas de uma proteção, o acesso a uma segurança de ordem jurídica que os casais formados por homens e mulheres já usufruem.

Avanços ou retrocessos? Pode-se e deve-se discutir, sempre! Porém, é inegável o peso simbólico que a aprovação desta lei tem hoje, numa Europa onde países de tradição católica como Portugal e Espanha já aprovaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo, contrariamente ao reino Reino Unido, para ficar apenas num exemplo além da França. Isto, para não citar, vários avanços que a aquisição destes diretos proporcionará. Por exemplo, os casais que são constituídos por parceiros e parceiras de nacionalidades diferentes e que, entre outras coisas, podem vir a adquirir o direito pleno de cidadania europeia (pensando nas vantagens em termos de vida legal por aqui).

Este é, com certeza, mais um passo importante que deve ser dado pela França, que apenas no ano de 1981, com a ascensão ao poder de um governo socialista, deixa de penalizar a homossexualidade. Espero que este passo seja dado no Brasil, onde os índices de crimes homofóbicos são aterradores e, sobretudo, que tantas outras ações sejam realizadas nos países que ainda matam legalmente seus supostos inimigos.

Afinal, sempre é bom lembrar, vivemos numa sociedade em que apenas em 1990 a homossexualidade foi tirada da lista de doenças mentais da OMS (Organização Mundial de Saúde).

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Agradeço especialmente minha amiga, também feminista, Patrícia, que tantas vezes discutiu comigo sobre este e tantos outros assuntos. E, que contribuiu com sugestões e revisões de forma a deixar este texto um pouco mais claro. Esperamos! Os erros e ideias são de minha inteira responsabilidade.

Autora

Lettícia Leite tem 33 anos e continua apreciando os barulhos que consegue ouvir nos momentos de silêncio.