Do que deveria, mas não me representa: moda

Texto de Deh Capella.

Minha relação com a moda é um pouco tumultuada. Não, não, nossa relação é de distância mesmo – nós nos ignoramos. Eu finjo que ela não existe, respiro fundo, passo adiante e quando posso vou lá e a contrario (seria isso também algum tipo de adesão a uma faceta dela? Vivo me perguntando); ela, por sua vez, me ignora, ignora minha altura, meu peso e meus contornos, assim como várias de minhas necessidades. Eu decido que quero uma sandália de salto médio na cor marfim porque vai ficar bem com um vestido X em um casamento e a minha anterior já foi pras cucuias e visito uma infinidade de lojas em vão porque “não tá usando” ou “com salto desse tamanho só tem 35” ou “só tem salto mais alto”, “lisa assim não tem, só com pedraria”. Troque sandália por jeans ou camisa básica ou vestido de festa ou lingerie e você vai ter uma ideia prévia de como é essa relação entre um indivíduo e uma…entidade? um setor? Um conjunto de produtos e serviços?…enfim, vai ter uma ideia de como é essa relação de mútuo desprezo.

Soa fútil o parágrafo anterior? Não deveria – não do meu ponto de vista. Para além do que entendo como papel cultural da moda – de expressar hábitos, costumes e a mentalidade de um determinado grupo em um contexto específico – entendo que suas funções práticas deveriam incluir o atendimento das necessidades do consumidor. Mas daí todos aqueles envolvidos nessa cadeia produtiva querem, compreensivelmente, vender bem seus produtos, e vão procurar oferecer aquilo que melhor atende à demanda.

Minha pergunta aqui é: quem compõe, quem forma essa demanda? O público, a mídia, os próprios produtores da moda? Acho que faz um certo sentido, por exemplo, pensar que pra quem produz a redução de custos é bastante interessante, então gastar menos com o desenvolvimento e a produção de peças é importante – então menos tecidos, menos gastos com modelagens específicas, com aviamentos, com o tempo de quem monta e costura as peças; menos riscos de encalhe de produtos com a produção daquilo que “tá usando”. Da mesma forma essa necessidade de redução de custos é posta em prática também com o corte de gastos com mão de obra: entra em cena a precarização do trabalho, muitas vezes levada ao extremo.

É a cara da marca, mas é a sua cara?
É a cara da marca, mas é a sua cara? Imagem cedida pela leitora Aparecida Morelli.

A moda serve também como forma de expressão individual. Ela representa o que se é, o que se quer ser também. Eu compro determinada marca, consciente ou inconscientemente, porque ela traduz o que eu sou e/ou o que quero, o que busco – nem que essa busca tenha a ver com a disponibilidade de tamanhos, cores, modelos e preços que me agradem, já que minha aparência e minha situação financeira fazem parte da minha identidade, ainda que sejam características transitórias. Se eu não encontro aquilo que eu desejo e que de alguma forma me traduz posso me frustrar, e isso é legítimo, a frustração de não se ver representado. Dito isso, penso que os catálogos, anúncios e cartazes retratam não a diversidade de pessoas que compõem a clientela de cada loja, mas o que se espera que aqueles consumidores queiram ser, aquilo com o que deveriam se identificar. Então as grifes – sobretudo as mais caras – apresentam modelos que atendem ao padrão de beleza longilínio e prioritariamente branco; são mulheres muito magras, altas, de cabelos lisos, pele clara, aparência jovem. É essa a “cara” da marca, é esse o público a ser cativado, assim como se espera que essa personificação da marca seja um ideal a ser atingido ou desejado pelo consumidor (ou consumidora, estou falando principalmente de moda feminina aqui – o que é uma imensa falha minha, justificada pelo fato de que só posso falar da minha experiência e de meu ponto de vista de mulher).

Representa a marca X, mas te representa, contempla sua vida?
Contempla sua vida ou é mais um catálogo mostrando uma realidade restrita? Imagem cedida pela leitora Aparecida Morelli.

Daí você, que tem lá seus 1,70 de altura e, vamos lá, 90kg ou mesmo 100, ou que tenha 1,70m e 45kg, no raciocínio de uma imensa fatia daqueles envolvidos com o planejamento e a fabricação de produtos do setor da moda, não deveria gostar de jeans de cintura mais alta, ou mais folgados, ou de camisas de corte bonito, ou mesmo peças de lingerie modernos, coloridas, sexies, diferentes dos calçolões e dos sutiãs pretos/beges/brancos de modelagem austera, ou deveria se contentar com roupa e lingerie feita para criança – qual a fatia desse mercado quer ser associada a uma imagem claramente fora do padrão de beleza vigente? Então você aí que não se enquadra no padrão deve se contentar com o que tem por aí, deve se espremer no que encontrar, deve se virar (“vai emagrecer, meu bem”, é o que me disseram já alguns olhares silenciosos e impiedosos, mas muito expressivos, de vendedores e vendedoras de lojas); ou procurar lojas com roupa pra “gente como você” ou encontrar uma costureira. O preço é alto porque são produtos diferenciados? Problema seu.

O que a gente faz com isso, com esse aspecto nada democrático do que poderia servir para que você se sinta confortável, do que deveria te incluir, te permitir se expressar? Vamos lá boicotar, é uma possibilidade que se levanta. Mas como boicotar, por exemplo, cadeias de lojas que têm maior variedade e preços razoáveis? Qual a alternativa para quem não tem habilidade manual e conhecimento suficiente e mesmo tempo para fazer suas próprias roupas (lembrando que nas lojas paga-se literalmente o preço da comodidade de encontrar as peças prontas, e que a figura da costureira/modista para roupas do dia-a-dia deve estar se extinguindo, inclusive por não poder concorrer com os preços do comércio, que lida com grande quantidade e consequentemente pode oferecer preço menor)? Vejo o boicote como ação interessante, sobretudo em nível pessoal: nunca mais entrar na loja que não atendeu minhas necessidades me deixa com a sensação boa de independência e de reação, meu dinheiro eles não terão. Mas em nível coletivo é preciso uma ação massiva e que uma o boicote a manifestações conjuntas de pressão para a modificação das práticas de produção e comércio e também para a valorização e divulgação das marcas e estabelecimentos que praticam a democratização da moda.

Chique mesmo é um mundo em que ninguém sai do provador da loja infeliz, resignado ou frustrado.

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* Agradecemos à leitora Aparecida Morelli pelo envio das imagens que ilustram este post.

* Agradeço também a Kika Del Piero, Alessandra Trindade e Luciana Nepomuceno pela leitura atenta e pela troca de impressões – e a todas as pessoas que participaram da discussão gerada pelas imagens.

* Imagem destacada de @milesbeyondthemoon no Flickr, com alguns direitos reservados.