Uma transexual inspiradora

Texto de Aline Freitas.

Original publicado no blog: Transexualidade.

Não me lembro a primeira vez que o vi. Era muito amigo da minha irmã, um rapaz bem efeminado, chamava muito a atenção por onde andava. Estudou com minha prima. Segundo ela, era agredido pelos outros alunos mas não se deixava humilhar, respondia a altura. Minha família tinha uma academia de dança e lá foi seu primeiro emprego como professor de ginástica aeróbica. Não me lembro sua idade naquela época. 15, 16 anos? Suas aulas eram muito concorridas.

Ele era muito próximo da minha família. Íamos a praia juntos, ao Playcenter, a festas. Era sempre convidado, era quase da família. E na medida em que os conflitos com a família dele aumentavam, mais próximo ele ficava da minha família, era um lar onde ele era bem acolhido. A primeira vez que eu ouvi falar de hormônios foi quando minha irmã contou para minha mãe que ele estava se hormonizando. As mudanças foram rápidas, e logo entendi que ele na verdade era a Bruna.

Continuou dando aulas de ginástica no Grêmio Esportivo da cidade. Ela enfrentava horrores. Onde quer que passava se ouvia comentários maliciosos. Se algum pai ou mãe pudesse apontar um pior tipo de “filho”, era Bruna o exemplo. Ela estava sempre com uma amiga também trans. Aliás, não atoa os meninos do bairro me apelidaram com o nome dessa amiga dela. Elas começaram a trabalhar na cidade vizinha, num conhecido ponto de prostituição. Ainda início dos anos 90, ainda nos anos mais difíceis de epidemia da AIDS, morria gente conhecida a cada semana das quais meninas que andavam com elas. Lembro de uma que conheci em uma semana e na seguinte soube que estava internada, a beira da morte.

Transgender Buterfly. Imagem de Dlloyd at English Wikipedia [Public domain], via Wikimedia Commons.
Transgender Buterfly. Imagem de Dlloyd at English Wikipedia [Public domain], via Wikimedia Commons.
As duas sobreviveram, mas ainda tiveram muito o que enfrentar. Bruna começou a fazer faculdade numa cidade próxima. A faculdade era financiada com o dinheiro que recebia do trabalho “na pista”. Teve que enfrentar professores, teve que enfrentar a direção da faculdade, teve que enfrentar os alunos da turma e de toda a faculdade. Bravamente resistiu. Era uma época onde não se tinha consciência de direitos. Onde ser trans era carregar o fardo da culpa, e não havia muito como se defender de manifestações explícitas de desagrado, de ofensas e de rechaço.

Bruna se formou em administração de empresas, assumiu o controle de uma auto-escola da família que estava a beira da falência. Sob sua administração o negócio passou a funcionar, cresceu. Precisava de alguém de confiança para trabalhar com ela. Chamou a amiga trans com quem dividia as calçadas. E de forma talvez hipócrita ganhou o respeito na cidade. Para mim ela é um grande orgulho, um exemplo de vida. De alguém que enfrentou o rechaço absoluto, mas resistiu e venceu.

Nesta semana da Visibilidade Trans gostaria de lembrar da Bruna e de todas as heroínas e heróis que, como ela, conseguiram vencer. Que a história dela nos ajude a ver nossa população não como coitadas/os ou algozes, mas como seres humanos que necessitam de direitos fundamentais mas também de solidariedade e de amor.

Que muitas outras Brunas poderiam existir se tantas macro e micro agressões cotidianas não destruíssem sonhos, porque nem todas/os de nós somos tão fortes quanto a Bruna. E finalmente, gostaria que a Bruna servisse de estímulo para que travestis e transexuais masculinos e femininas tenham forças para lutar e mudar suas próprias vidas.

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Aline Freitas é sysadmin de profissão e interessada em questões de gênero por hobby e por de certa forma ser algo que envolve minha vida. Escreve no site: Transexualidade.