Aldeia Maracanã: sonhos que não se vendem

Texto de Bárbara Araújo e Renato Silva*

Batalhão de choque na desocupação da Aldeia Maracanã.
Batalhão de choque na desocupação da Aldeia Maracanã.

A brutalidade policial ocorrida no desalojamento da ocupação do antigo museu do índio do Rio de Janeiro, que passou a ser conhecido como Aldeia Maracanã, está a um toque da tecla “mudo” dos controles remotos. As imagens veiculadas pela grande imprensa durante a última sexta feira mostraram um numeroso batalhão de choque lançando as chamadas “bombas de efeito moral”, jogando spray de pimenta e agredindo índios, manifestantes, parlamentares e crianças. O som da televisão, quando reativado, mostra um cenário diferente. Com o foco principal na perturbação da normalidade do trânsito nos arredores do local, os jornalistas narravam com calma e naturalidade a ocorrência de um “confronto” entre manifestantes e a polícia por ocasião da construção de um museu olímpico no lugar do prédio histórico.

Ao contrário do discurso da grande imprensa, o que aconteceu na Aldeia Maracanã não foi um “confronto”. Foi um massacre. Corpos humanos, indígenas e não, contra a truculência do batalhão de choque, braço armado dos governos municipal, estadual e federal, capachos dos interesses empresariais internacionais ávidos pelas possibilidades de lucro associada aos mega-eventos que o Brasil sediará.

 

 O desenrolar da luta no fim de semana

Parte dos indígenas da Aldeia foi levada para um alojamento “provisório” (a proposta do governo é que espaço funcione como abrigo enquanto um “centro de referência de cultura indígena” seria construído em um prazo de um ano e meio). O alojamento se trata, na verdade, de alguns contêineres, que amanheceram completamente alagados já neste domingo.

Audiência pública na Justiça Federal, no centro do Rio.
Audiência pública na Justiça Federal, no centro do Rio.

Os demais indígenas decidiram dar prosseguimento à resistência e ocuparam pacificamente o atual Museu do Índio, no bairro de Botafogo, no sábado. A ocupação durou pouco, e na madrugada de domingo a tropa de choque da polícia militar cercou o prédio e fechou a rua, impedindo a imprensa e apoiadores de se aproximarem do local. Chegou a haver um mandado de prisão contra os ocupantes, mas após negociações, eles foram para encaminhados para a sede da Justiça Federal para a realização de uma audiência pública. O juiz intimou um representante da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e convocou uma representação do governo do estado, que não enviou ninguém para a audiência. Diante do entendimento de que nem a FUNAI nem o estado tinham propostas razoáveis para solucionar o problema, o juiz determinou que uma comissão de indígenas fosse com ele ao terreno da Aldeia para avaliar a possibilidade de ocupação do prédio desativado do Lanagro (Laboratório Nacional de Agropecuária), que compõe o Complexo Maracanã. O prédio, já destruído pelo interior por conta das obras para a Copa, foi avaliado como sem condições de habitação pelo juiz. Os índios insistiram na reivindicação por ocupar território indígena, sugerindo o retorno ao novo Museu do Índio, onde poderiam se instalar em um galpão. Mas a representação da FUNAI, em atitude paradoxal e lamentável, negou o espaço do museu para os indígenas, alegando que eles ofereceriam perigo para o acervo. O caso segue sem acordo entre as partes e, portanto, sem desfecho.

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O antigo museu do índio e o novo

Embora parte da opinião pública tenha dado eco a percepções rasas e etnocêntricas do caso da Aldeia Maracanã, deslegitimando os indígenas por não se encaixarem no estereótipo do bom selvagem que vive nos confins da floresta e classificando seus apoiadores como baderneiros e desocupados, a violência do desalojamento causou revolta e perplexidade em muita gente. É possível, ainda assim, que persista a dúvida: qual a importância de ocupar o terreno do antigo Museu do Índio?

Rondon-e-Cadete
Marechal Rondon e o Chefe Bororo Cadete no antigo Museu do Índio em 1952. Fonte: Mércio Gomes.

Construído há 147 anos, o prédio abrigou a sede do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), antecessor da FUNAI, dirigido pelo Marechal Rondon. Em 1953, o prédio tornou-se o Museu do Índio, estabelecido pelo antropólogo Darcy Ribeiro em conjunto com indígenas. O museu de Botafogo, como fica claro na atitude na FUNAI de separar indígenas e acervo como coisas provenientes de mundos diferentes e mesmo conflitantes, apresenta uma concepção de conservação de uma cultura indígena inanimada e folclórica. No caso do antigo museu, reconheceu-se a autonomia e a dignidade indígena, percebendo-se sua cultura não como encarcerada no passado, mas como parte fundamental do presente.

Durante anos, o terreno do antigo museu esteve abandonado, mas em 2006 o espaço ganhou nova vida. Com a progressiva ocupação de indígenas das mais diversas etnias e provenientes de vários lugares do país, o lugar virou um espaço de troca, de ensino e de refúgio. Cabe lembrar, nesse ponto, que a ocupação não se tratou apenas de um movimento cultural, mas de uma necessidade de moradia em muitos casos, dada a expulsão sistemática dos indígenas de seus territórios por grileiros, madeireiras, hidrelétricas e pelo famigerado agronegócio.

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No ultimo ano, a Aldeia intensificou seu contato com a sociedade civil. Ela esteve de portas abertas para os que quiseram aprender sobre as variadas culturas que lá se encontravam. Houve visitas de escolas, oficinas de pintura, de artesanato, houve casamentos indígenas  Ali esteve presente a cultura indígena; ali se podia ver conhecimento de fato, sendo produzido e compartilhado.
O museu não só era vivo, mas gritava de vitalidade, lembrando que as questões indígenas não se limitam ao passado, mas são absolutamente atuais.

Atividade cultural na Aldeia. Fonte: Vírus Planetário.
Atividade cultural na Aldeia. Fonte: Vírus Planetário.

A mensagem da Aldeia é clara: há coisas que não se negociam, não se vendem. Todos devem ter direito à memoria, à cultura, à identidade e à preservação de si e da sua autonomia. A transformação destes em mercadoria é inaceitável. A Aldeia era uma alternativa, uma forma de resistência contra o atual funcionamento da cidade e do estado do Rio de Janeiro. E, por isso, ela era considerada inaceitável pela atual gestão governamental. Por isso, apesar das tentativas de tombamentos, das declarações de especialistas de variadas áreas em relação à importância da manutenção do prédio, do pronunciamento da própria FIFA esclarecendo que nunca exigiu sua demolição e da mobilização da sociedade civil, a ordem do governo foi de destruição. Mas, apesar de tudo, o espírito da Aldeia está vivo, a luta prossegue, a Aldeia Maracanã resiste.

* Renato é professor de História e faz PhD na Universidade de Leicester.

Esse texto foi construído com a ajuda de relatos de apoiadores do movimento da Aldeia Maracanã.