Texto de Luciana Nepomuceno em parceria com Bárbara Lopes.

O Banco Mundial lançou no dia 01 de março a campanha “Homem de Verdade Não Bate em Mulher”, contando com a participação de atletas e atores, personalidades conhecidas pelo grande público (com uma participação especial de Maria da Penha) que seguram uma plaquinha com o mote da campanha.
Um olhar inicial verifica os pontos positivos da iniciativa: uma ação que se comunica facilmente com o senso comum, com pertinência temporal (já que foi lançada na semana do Dia Internacional da Mulher, um dia de luta feminista) e aparentemente convergente com a constatação aterradora que a violência contra a mulher é epidêmica no Brasil.
Um segundo olhar, contudo, traz para o centro elementos que devem ser discutidos. O primeiro ponto são os modelos escolhidos para representar o “homem de verdade”. Podemos deduzir que a ideia era escolher celebridades que o homem comum, alvo da campanha, admirasse e aspirasse a ser como. Mas ao fazer isso, a campanha traz uma visão naturalizante do gênero e elitizada, excluindo uma diversidade de homens – com atenção especial para a ausência de homens trans – e reforçando padrões de masculinidade.
Quando assinamos a afirmativa que um “homem de verdade” faz isso ou não faz aquilo, estamos compactuando de que existem homens que são mais homens que outros. Que existem comportamentos e características essencialmente masculinas que nos ajudariam a separar o joio do trigo. Quando se convoca um homem para que ele aja de determinada maneira pra ser considerado “de verdade” o que se está a fazer é convocar o seu desejo de se identificar com o tipo ideal. E o tipo ideal na nossa sociedade é o macho. Ainda ressoa a injunção: seja homem! com que se violenta e humilha meninos para que não demonstrem fragilidade.
Quando se convoca o “homem de verdade” dá-se a entender que há um pseudohomem, um homem fake, um homem falso. De um lado, o homem de mentira é quem? O gay, claro. Ou a mulher. Alguém que é menos, incompleto, insuficiente pra ser considerado “homem de verdade” (acha que estamos exagerando? dá uma olhadinha no texto do Verissimo onde ele desnuda essa equação). Por outro lado, podemos lembrar de expressões como “és um homem ou um rato?”, “és um homem ou um verme?”.
Nesse tipo de construção, estão embutidos valores – firmeza de caráter, coragem, honra. Bater em mulher, para a campanha, iria contra isso. Mas mesmo sob essa luz mais favorável, o que temos é a associação de certos valores com a masculinidade (enquanto mulheres seriam sensíveis e altruístas). A desigualdade de gênero se alimenta desses estereótipos: coragem pode ser outro nome para a agressividade; altruísmo pode ser uma justificativa para o sacrifício das próprias necessidades.
Os homens que batem em mulheres são tão “de verdade” quanto o que não batem. São reais, concretos. Eles não são ponto fora da curva ou exceção monstruosa. Pelo contrário, eles são produto e produtores da cultura machista, eles a representam. Eles batem porque eles podem. E podem porque a sociedade, cúmplice, legitima e justifica. Bater é um passo a mais no cotidiano de violência e exclusão a que as mulheres são submetidas. E este é, talvez, o principal equívoco da campanha: reduzir a violência contra a mulher a um dos seus aspectos, escamoteando a relação entre as várias violências a que somos submetidas: simbólica, física, psicológica.

A campanha “Homem de verdade não bate em mulher” no lugar de desconstruir, questionar e criar conhecimento sobre o tema junto ao senso comum, funciona sustentando e sendo sustentada pelo status quo. Sua fórmula nos lembrou o antigo ditado de que “em mulheres, não se bate nem com uma flor”. O combate à violência não é feito humanizando as mulheres, mas afirmando sua (nossa) fragilidade. Um brinquedo delicado, como diz Cleyton Boson:
Eu, assim como a maioria avassaladora dos homens, fui educado para ver a mulher como brinquedo. No caso do meu aprendizado (uma formação de esquerda), um brinquedo muito delicado e muito especial do qual a gente tem que cuidar com muito carinho, mas, mesmo assim, um brinquedo. E, como todo brinquedo, a sua principal finalidade é entreter o seu dono. A um brinquedo é negado qualquer direito sobre si mesmo e cabe exclusivamente ao proprietário as decisões sobre a melhor forma de uso, incluindo aí o descarte.
A luta contra a violência contra a mulher é urgente e a união de esforços para isso é necessária. Não ignoramos nem desmerecemos as iniciativas. Mas é importante trazer pro foco contra o quê lutamos: a violência não é um fenômeno isolado da cultura. Não é praticada por homens fora da curva. Para combatê-la é preciso entender esses nexos e desconstruir o discurso dicotômico. Somos todos homens e mulheres de verdade.