Julia Lopes de Almeida: uma mulher que a pátria desconhece

Texto de Adriana Mattoso Rodrigues para as Blogueiras Feministas.

Quando estava em Paris, em 2011, combinei de encontrar o Marcos num monumento chamado Panthéon (ou Panteão, em português). No caminho para lá, acabei descendo errado do metrô e durante a caminhada achei que havia me perdido. Um senhor, me vendo olhar o mapa, perguntou se eu precisava de uma ajuda. Disse que procurava o tal lugar e ele me disse: “É bem perto, se você quiser eu posso andar com você até lá”. Aceitei a ajuda, afinal, como sou totalmente desorientada e já fiquei duas horas andando em círculos por Paris antes, não queria arriscar me atrasar demais.

No caminho, que deve ter durado uns 5 minutos, o senhor começou a jogar conversa fora. Fiquei um pouco surpresa, pois os parisienses não são muito de papear com turistas. Mas devido a idade dele, supus que pudesse gostar de prosear e aproveitei para treinar meu francês. Ele me perguntou se eu sabia o que era esse lugar para onde eu estava indo. Eu disse que em teoria sim, mas que estava indo mais para encontrar alguém. Ele insistiu e perguntou novamente o que era um Panteão. Eu disse que normalmente é o nome que damos ao conjunto de divindades de uma determinada religião. Ele aproveitou para complementar que aquele para onde eu ia, em especial, abrigava os heróis da pátria. Achei engraçado igualar a pátria aos deuses, mas depois me lembrei da representação da República e tudo fez sentido. Chegando lá, já sozinha olhei para o monumento e li:

“Aux grands hommes, la patrie reconnaissante”

Aos grandes homens, a pátria reconhecedora (ou “Os grandes homens, a pátria reconhece”, realmente não gosto de fazer traduções, me desculpem).

Aquela frase ficou na minha cabeça martelando. Onde estavam as mulheres que ajudaram a construir aquela nação? A única mulher lá dentro é Marie Curie, mas seria só ela? Já sabia da existência de muitas outras como Olympe de Gouges, só para citar um exemplo.

Fiquei pensando no Brasil, nos nossos heróis nacionais: Marechal Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, D. Pedro I, Princesa Isabel, Juscelino… Mas são poucas, muito poucas que reconhecemos como heroínas. Será que é mesmo verdade que elas não fizeram nada, ficaram só sendo donas de casa?

Se fosse só por isso, já era muito, afinal, parir e criar a nação não é uma tarefa fácil, ainda mais naquela época. Mas se como isso não bastasse, elas fizeram muito mais em uma época onde as mulheres não podiam sequer andar sozinhas nas ruas (infelizmente ainda hoje não nos sentimos seguras em andarmos sozinhas em alguns lugares). Mas voltando à História, não vou fazer um compêndio das mulheres que fizeram a nossa, e que foram esquecidas, pois são muitas – vide as volumosas coleções lançadas pela Editora Mulheres. Eu me refiro a mulheres que fizeram a História como protagonistas, não ficando atrás de grandes homens, apesar disso já ser em si uma maneira muito sexista de pensar a História.

Voltando ao Panteão francês, lembrei-me da quantidade de escritores enterrados ali: Victor Hugo, Rousseau, Dumas… Por que um escritor chega a ser considerado um herói nacional? Dentre as muitas respostas que posso dar a essa questão, fico com uma que gosto especialmente: os escritores ajudam a “inventar” uma nação*. Podemos chamar isso de imaginário nacional.

Quando pensamos no Brasil como nação, imediatamente pensamos em Gonçalves Dias com sua canção do exílio, pensamos nos românticos de diversas gerações escrevendo sobre a natureza brasileira, o Guarani… Os escritores colaboram tanto para a visão ufânica quando para a pessimista do Brasil. Por isso existem escritores no Panteão da pátria francesa.

Nós, brasileiros, não temos um panteão, mas temos muitas pequenas (ou grandes) homenagens. Em Brasília, por exemplo, temos o memorial JK, um museu todo em homenagem ao cara que resolveu enfiar uma cidade no meio do nada. Temos ainda nesse memorial o corpo de Juscelino. Não sei como está colocado lá, pois como toda boa brasiliense nunca fui ao Memorial.

E como ficam então as homenagens a esses escritores, heróis nacionais? Bom, acredito que a mais reconhecida delas é uma cadeira na ABL – Academia Brasileira de Letras, que leva o nome de Machado de Assis, o nosso grande nome da Literatura Nacional. Muita gente diz, inclusive, que Machado só não é maior porque deu azar de ter o português como língua. Mas o que pouca gente sabe é que no grupo de escritores e intelectuais que se mobilizaram para criar a ABL, uma outra grande figura da Literatura Nacional daquele tempo ficou de fora por um pequeno detalhe, e não foi a língua, foi a saia.

Julia Lopes de Almeida.
Julia Lopes de Almeida.

Júlia Lopes de Almeida ficou de fora desse “panteão” por causa desse pequeno detalhe, era mulher. Podemos até pensar que foi porque não eram comum escritores mulheres naquela época, afinal, quais escritoras do séc. XVIII e XIX que nós conhecemos? Se não conhecemos é mais provável que seja porque a História se esqueceu de contar do que por uma carência de talento e nomes entre as mulheres. Júlia, por exemplo, escreveu romances e peças de teatro além de livros infantis, fazendo muito sucesso na sua própria época.

De acordo com Cátia Toledo Mendonça (2003), no final do século XIX e início do XX a produção cultural carioca, principalmente teatral, andava carente. Fato atribuído a influência maciça de companhias e peças europeias. A crítica da época considerava a situação desoladora. Nesse contexto, já com o distanciamento temporal da crítica atual, conseguimos ver a importância de muitos nomes, como o de Aluísio de Azevedo. Mas o de Júlia, muito expressivo na época, deixou de ser lembrando por essa crítica. A autora escreveu para diversos jornais e revistas, como a Gazeta de Campinas, A Semana, A Mensageira, além, é claro, dos romances e peças que publicou.

Em entrevista a João do Rio, o marido de Júlia, Filinto de Almeida confessa:

(João do Rio) – Há muita gente que considera D. Júlia o primeiro romancista brasileiro.

Filinto tem um movimento de alegria.

Pois não é? Nunca disse isso a ninguém, mas há muito que o penso. Não era eu quem deveria estar na Academia, era ela.

Para Mendonça, isso era o reconhecimento de que Júlia era uma grande escritora. Eu já acho um pouco diferente. Que sacana, esse Filinto! Podia ter recusado a cadeira. Tudo bem que hoje sabemos que uma cadeira na ABL não vale muita coisa como comprovação do talento de um escritor, mas eu realmente não me sentiria bem sabendo que estou “roubando” o lugar de outra pessoa. Como cita a própria Júlia, no artigo de Norma Telles (in Del Priori, 2009):

Não há meios de os homens admitirem semelhantes verdades. Eles teceram a sociedade com malhas de dois tamanhos – grandes para eles, para que os seus pecados e faltas saiam e entrem sem deixar sinais; e extremamente miudinhas para nós. […] e o pitoresco é que nós mesmas nos convencemos disto!

Brincadeiras a parte, Júlia teve uma carreira de escritora e jornalista de mais de 40 anos. Ela defendia a educação feminina, o divórcio e a abolição da escravatura. Já preocupada com a questão do cuidado, ela defendia também a instalação de creches, naquela época. É, Júlia, ainda estamos tentando…

Dentre as temáticas abordadas em sua obra, temos o campo e a cidade, o cotidiano e os costumes, mas devo destacar uma em especial, que vai parecer entre os conhecedores um tanto quanto polêmico – a independência feminina, abordado nas entrelinhas. Em “A Falência” ela conta a história de uma mulher que, dependente do marido e sem instrução, se vê falida e obrigada a mudar para o campo assim que este morre. Júlia discute nesse romance dentre muitas coisas: a questão das mulheres se instruírem e não dependerem somente do marido. Era uma situação comum na época as mulheres que ficassem viúvas acabarem na miséria, pois não sabiam administrar seus bens e muitas vezes não sabiam sequer ler. Além disso, a protagonista, que no início do romance vê o casamento e o amor como as únicas possibilidades para as mulheres, termina o romance só e feliz cuidando da sua própria vida e da educação das filhas.

Apontada por umas como feminista, por outras como uma mera reprodutora da ideologia dominante da época, acredito que Júlia deve ser mais estudada e conhecida. Acho que devemos descobrir porque esses nobres escritores contaram com ela para ajudar a idealizar a Academia Brasileira de Letras e o quanto ela era importante na sua época. Precisamos sair do eixo Clarice – Queiroz da Literatura Brasileira e conhecer outras “matriarcas” da pena. E que se não fizeram mais, ajudaram pelo menos com que o podiam na época, superando a humilhação e o medo para demarcar o território onde sim, mulher pode.

A novela Lado a Lado, que teve como tema a emancipação feminina, citou o caso de Julia Lopes de Almeida. Laura assinava matérias jornalísticas com pseudônimo masculino, ao revelar sua identidade para o editor do jornal, ele não aceita publicar o texto de uma mulher. No último capítulo, Edgar, marido de Laura, recebe um prêmio por seu trabalho como jornalista, mas soube previamente que o prêmio seria dado a Paulo Lima, pseudônimo de Laura, e que ao descobrirem que era uma mulher desistiram de premiá-la. Na hora do prêmio, Edgar surpreende a todos chamando Laura ao palco para receber o prêmio.

*Fazendo uma referencia ao livro do cientista político norte-americano, Benedict Anderson, “Comunidades Imaginadas”, onde o autor discute que a nação é uma comunidade imagina.

——

Você pode conhecer as obras de Julia Lopes de Almeida por e-books no site Free e-books.net. Ou adquirindo exemplares na Editora Mulheres: Memórias de Marta, A Família Medeiros, A Silveirinha, A viúva Simões.

Referências

DEL PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil, 9. ed. 2ª reimpressão – São Paulo, Contexto, 2009.

MENDONÇA, Cátia Toledo. Júlia Lopes de Almeida: A busca da liberação feminina pela palavra, in: Revista Letras, Curitiba, n. 60, p. 275-296, jul./dez. 2003. Editora UFPR. Link: http://www.letras.ufpr.br/documentos/pdf_revistas/mendonca.pdf

PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman Feminino: quatro exemplos brasileiros. São Paulo, Perspectiva, 1990. – (coleção debates; v. 233)

VIERA, Marly Jean de A. P. A educação da mulher: ruptura e tradição em A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida. In: Livro do Grupo de Pesquisa Vozes Femininas. Link: https://sites.google.com/site/vozesfemininasunb/a-mulher-escrita-a-escrita-ulher-

Autora

Adriana Mattoso Rodrigues é uma neurastênica reflexiva em busca de paz de espírito. Atualmente em trânsito, definitivamente sem destino. Para quem interessar, louca por literatura, feminismo e artesanato. Tentando levar todas essas paixões para o plano profissional.