O corpo da mulher cis

Texto de Liliane Gusmão.

Nota: o termo “cis” se refere a cisgênero, um conceito que identifica as pessoas que não são trans*.

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Meu corpo de mulher cis não tem definições exatas. Meu corpo não define quem eu sou ou devo ser. Meu corpo pela sua forma ou anatomia não é capaz de abarcar meu eu, tudo o que eu sou ou minhas escolhas.

Meu corpo de mulher cis não define minha sexualidade, feminilidade, maternidade, maternagem ou via de parto. Tão pouco determina universalmente essas experiências. Meu corpo de mulher cis não é parâmetro para definir isso tudo, quem dirá para todas as outras pessoas, sejam elas cis ou não. Meu corpo não define assim minhas experiencias enquanto mulher cis, heterossexual, não-branca, não-deficiente, e não serve de régua para nada disso também.

Foto de henry no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Foto de henry no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Minhas experiências, minha vivência, o ambiente onde vivi e cresci, as pessoas que conheci e com quem interagi, o lugar onde vivo, tudo isso junto e misturado é que me fizeram entender o que sou e também entender meu corpo como o entendo. Mas, eu não sou um corpo pronto. Eu sou um corpo em construção. Eu sou hoje o rascunho do que serei amanhã.

Para mim, nós humanos somos apenas rascunhos ou fotos desfocadas, quadros impressionistas. Nada pode nos definir, porque não paramos de nos modificar a cada interação. Não há, por isso, possibilidade de definições que englobe tudo, todas e todos. Somos muitos e muito diversas.

Então, me incomoda uma militância que restrinja seu foco a um tipo de corpo. Uma militância que restrinja as experiências das pessoas a uma forma de corpo, que restrinja o corpo. Que invoque ou designe o corpo da mulher cis como o único corpo feminino possível. Me incomoda uma militância que insista em tratar o corpo da mulher cis como norma e que tome esse corpo como base das suas reivindicações. Minha militância questiona e questionará, sempre a necessidade de especificação de um tipo de corpo como seu foco.

A militância que visibiliza pessoas trans* não apaga a mulher cis. A militância materna que se restringe a corpos de mulheres cis, ou demandas exclusivas de mulheres cis, não me representa, porque homens trans* engravidam, podem parir e amamentar. Existem mulheres trans* e cis que não podem amamentar, engravidar ou parir. Porque a parentagem e o cuidado não se restringem ao parto e a amamentação. Porque não são essas ações biológicas que constroem e/ou determinam o vínculo parental.

Por isso, entendo que a demanda de cuidado não deve se restringir à mulher cis e ao seu corpo, pois não é necessário parir ou amamentar para que alguém se torne mãe ou pai. Apesar de ser assim que a maternagem/parentagem é enxergada, reproduzida e reforçada na maioria das vezes.

Meu feminismo nasceu quando fiquei grávida. Poderia até dizer que meu feminismo é materno na sua origem pois, foi quando me neguei a entrar na caixa de maternidade que me ofereceram que o reconheci. Eu nunca coube no papel pré-determinado de maternidade que me ofereceram. Meu feminismo floresceu e transbordou de mim pois me recusei a seguir as regras que estavam postas. Não foi a maternidade que me fez feminista, foi a subversão dela que fez com que eu me enxergasse assim.