Nem toda prostituta é Gabriela Leite: prostituição, feminismo e leis

Texto de Camilla de Magalhães Gomes.

Não há debates fáceis no feminismo. Dito isso, o texto que aqui apresento pretende realizar uma provocação sobre um dos mais complexos desses debates: a prostituição e sua regulamentação.

Duas posições historicamente antagônicas sobre esse tema coexistem dentro do feminismo: de um lado, aquelas contrárias sustentam, entre outros argumentos, que a prostituição é reflexo ou consequência do patriarcado – e do capitalismo que dele junto está – e que representa, por isso, a dominação masculina sobre as mulheres e seus corpos. De outro, estão as que defendem a regulamentação, tendo como argumento, entre outros, os direitos trabalhistas, a autonomia e a liberdade de escolha da pessoa.

Claro que essa identificação de duas correntes de pensamento [1] não inclui todos os posicionamentos no tema, mas serve como um resumo inicial para a discussão que se pretende criar nesse espaço. E nem pretendo aqui dizer qual dessas duas correntes está correta: ambas tem argumentos relevantes e outros equivocados. Mas digo, sim, que meu posicionamento é favorável à regulamentação, ainda que guardando algumas restrições a respeito do fundamento da autonomia usado comumente para sustentá-la. Meu argumento é outro e tentarei explicá-lo nesse texto.

Isso porque manter o debate nesses termos dicotômicos é criar falsas simetrias e não debater. Discutir onde há ou não há autonomia das pessoas na prostituição é continuar negando espaço a essas pessoas – mulheres cissexuais em sua maioria [2] — que lutam pelo reconhecimento de um direito. É manter o que já está, a estrutura social, a desigualdade e os tabus. Sim, a desigualdade de gênero existe e junto com ela a violência. Mas as suas formas não podem ser explicadas por uma metanarrativa universalizante, nem de um lado, nem de outro.

Não se nega que muitas são submetidas desde cedo à exploração sexual e por vezes a prostituição é saída única, por ausência de opção, por uma deficiente construção da identidade, por uma vida ausente de um espaço de autonomia a ser conhecido.  Não se nega, também, que existam muitas outras livres e autônomas exercendo a atividade. As duas realidades são verdadeiras. Assim como são verdadeiras tantas outras conformações possíveis na prática que aqui se discute, especialmente em um país de dimensões continentais, desigualdades sociais, raciais e de gênero. Não há solução nem discurso único e as explicações universalizantes não permitem que o debate avance. A argumentação de que a regulamentação esquecerá da existência das mulheres exploradas não procede e será discutida neste texto.

A pauta da regulamentação é, antes de qualquer coisa e independente de construções teóricas sobre a autonomia ou de discussões de gênero e de feminismo, uma pauta de luta, uma reivindicação de um grupo social. E, assim sendo, não cabe ao feminismo se apropriar do tema e se substituir às vozes que reivindicam, mas sim ouvir quem luta e a elas dar voz.

É de luta por direitos que se trata e, ao fim e ao cabo, é de luta que o feminismo trata. E é de luta e de direitos que aqui se fala. E aqui adianto outro posicionamento: O PL 4.211/2012 — Projeto de Lei Gabriela Leite, que regulamenta a atividade das profissionais do sexo — não soluciona a questão. Rejeitá-lo completamente, no entanto, não é o caminho. Que se permita e se promova, assim, o debate.

A questão desse texto, então, talvez seja essa: hoje, sem regulamentação, onde estão as prostitutas no Direito? Onde as deixamos — a partir do olhar do Direito — quando o debate se mantém alheio às reivindicações dessas pessoas?

Foto de Ana Carolina Fernandes. Parte da série fotográfica: "Mem de Sá, 100”. O projeto nasceu depois de quase três anos de observação da rotina das travestis num casarão antigo na Lapa, no Rio de Janeiro.
Foto de Ana Carolina Fernandes. Parte da série fotográfica: “Mem de Sá, 100”. O projeto nasceu depois de quase três anos de observação da rotina das travestis num casarão antigo na Lapa, no Rio de Janeiro.

A EXPLICAÇÃO PELO PATRIARCADO

Começo, então, tratando de um dos argumentos utilizados por quem se posiciona de modo contrário.

A ideia do patriarcado, de uma estrutura social organizada pela dominação masculina universal, em que: “A dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas são parte de um pacto original”, como diz Carole Pateman [3], em que a história de sujeição é pautada em um contrato sexual que cria, ao mesmo tempo, “a liberdade e a dominação”, foi importante para a construção do feminismo e mesmo — com autoras como Catherine MacKinnon [4] — para a discussão do feminismo no Direito. O conceito, no entanto, precisa ser abandonado ou ao menos utilizado de forma mitigada ou combinada com outros.

A metanarrativa do patriarcado essencializa o gênero e se baseia na divisão binária masculino-feminino. O contrato sexual cria a dominação do masculino sobre o feminino e assim identifica-os: homem-dominador, mulher-domínio; homem-inimigo, mulher-vítima. Narra a sexualidade feminina a partir da masculina e a partir da referência a corpos binariamente identificados apenas por pênis e vaginas. Ao assim fazer, encerra os corpos nas caixas do gênero/sexo, em vez de desconstruir essa divisão arbitrária; identifica relações sociais apenas a partir do sexo, reduzindo-as a tanto; negligencia, oculta ou silencia a atuação das mulheres na construção de sua própria sexualidade; associa a construção da autonomia feminina à heteronormatividade e esquece que a circulação do poder entre pessoas não existe apenas nesse modelo hierarquizado.

A explicação do patriarcado, como sustenta Katherine Bartlett [5], coloca as mulheres em uma posição cruel: se são o objeto de dominação em uma estrutura social que se explica pela hierarquia de gênero e cujos sistemas são todos criados para garantir essa hierarquia, como elas podem escapar dessa dominação?

Soma-se, ainda, que não é possível esquecer que a atividade de prostituição não é realizada apenas por mulheres cissexuais, mas também no que aqui nos interessa e muito, por mulheres transexuais e por travestis que, muitas vezes, em razão da dificuldade de entrarem no mercado formal de trabalho, tem a prostituição como necessidade muito mais do que opção [6]. Não é possível manter a narrativa do patriarcado, baseada em corpos essencializados e identificados como binários, como explicação para a prostituição, sem excluir transexuais e travestis do debate.

A EXPLICAÇÃO PELO MORALISMO 

Descartadas devem ser as narrativas universalizantes e, portanto, o patriarcado não pode explicar a questão.

Mas há outras explicações que também devem ser objeto de crítica. Para os que se posicionam de modo favorável, um dos empecilhos à regulamentação estaria no moralismo dos contrários, em especial no que interessa a esse texto, o moralismo de feministas ortodoxas. O argumento não é necessariamente verdadeiro, além de ser improdutivo e colaborar a manter o debate no terreno da obscuridade.

Nossa sociedade é machista e moralista e, assim, guarda tabus diversos, especialmente quando o assunto é sexo. Dizer, no entanto, que a contrariedade à regulamentação está baseada apenas no moralismo é um argumento frágil, que inclusive não atenta para o que diz essa corrente de pensar. Não concordo com a forma como está estruturada a argumentação contrária, como demonstrei acima, mas ao mesmo tempo não posso negar que essa linha tem intenções e preocupações legítimas que se concentram nas mulheres e nos riscos e violências sofridas pela exploração da atividade sexual.

Ainda que acredite que a contrariedade à regulamentação ajude a manter o debate parado e não responda a uma reivindicação desse grupo específico, não endosso a alegação de que apenas o moralismo é a motivação para que feministas sejam contrárias à regulamentação – ainda que seja obviamente possível encontrá-lo dentro do feminismo. Esse reducionismo das razões do debate ao moralismo só responde devolvendo-o à obscuridade e não nos permite avançar.

oto de Ana Carolina Fernandes. Parte da série fotográfica: “Mem de Sá, 100”. O projeto nasceu depois de quase três anos de observação da rotina das travestis num casarão antigo na Lapa, no Rio de Janeiro.
Foto de Ana Carolina Fernandes. Parte da série fotográfica: “Mem de Sá, 100”. O projeto nasceu depois de quase três anos de observação da rotina das travestis num casarão antigo na Lapa, no Rio de Janeiro.

DIREITO, TRABALHO E REGULAMENTAÇÃO

Ocorre, no entanto, que há uma pluralidade de realidades quando se fala em prostituição e que a generalização de todas elas como mulheres exploradas e, a explicação dessa exploração pelo patriarcado, não dão conta de tanta realidade. Rebater esse argumento, entretanto, com a ideia de que a regulamentação coloca todas as mulheres que exercem a prostituição como mulheres autônomas não é adequado, pelos motivos que serão expostos a seguir em minha defesa da regulamentação.

Antes de qualquer defesa, é interessante realizar uma outra crítica a um dos argumentos comumente utilizados aqui. Um deles é o de que a regulamentação é devida porque a prostituição é “um trabalho como qualquer outro”. O argumento é ruim, não só em razão do fato de que o exercício da atividade de prostituição envolve questões inexistentes em outros trabalhos, mas também pelo fato de que o “trabalho” não pode ser tomado como uma categoria única. Não é um trabalho como qualquer outro: é um trabalho que merece ser reconhecido como tal, ao mesmo tempo em que merece ter suas condições próprias levadas em conta. Nesse ponto, por exemplo, o PL 4.211/2012 peca pela falta [7].

Peguemos o exemplo da legislação uruguaia de regulamentação do exercício da prostituição. A lei criou uma “Comisión Nacional Honoraria de Protección al Trabajo Sexual”, integrado por delegados do Ministério da Saúde Pública, Ministério do Interior, Ministério do Trabalho e Seguridade Social, do Instituto Nacional do Menor e do Congresso de Intendentes e de Delegados de ONG´s que representam os trabalhadores sexuais [8].  Além disso, cria um registro nacional (voluntário) do trabalho sexual, cria zonas próprias para o exercício da atividade, dentre outras medidas.

Não quero dizer que a legislação seja imune à críticas ou que funcione bem na prática. A referência serve apenas como primeira base para a crítica do projeto que define a atividade da prostituição no Brasil. Com ela se quer demonstrar que não basta o contido nos artigos do projeto brasileiro — de redação simples com lacunas consideráveis — mas, também que, para ser possível definir a atividade como profissão, a regulamentação deve ir além dos poucos conceitos apresentados e esclarecer de modo mais abrangente a atividade, seu exercício e suas condições. Em seu artigo 1º, assim diz o PL 4.211/2012:

Art. 1º – Considera-se profissional do sexo toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração.

§ 1º É juridicamente exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual a quem os contrata.

§ 2º A obrigação de prestação de serviço sexual é pessoal e intransferível.

Logo depois, em seu art. 3º, determina que:

Art. 3º – A/O profissional do sexo pode prestar serviços:

I – como trabalhador/a autônomo/a;

II – coletivamente em cooperativa.

Parágrafo único. A casa de prostituição é permitida desde que nela não se exerce qualquer tipo de exploração sexual.

As duas conceituações não são suficientes. Não seria mais adequado considerar os dois conceitos em conjunto, portanto, complementares? Considerar que além de se ter como profissional do “sexo toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração”, estabelecer que só pode ser como tal considerada aquela que presta serviços autonomamente ou em cooperativa ou em casa de prostituição conforme regulamentação?

Essa escrita deixa aberta a possibilidade de que se considere como profissional do sexo aquela que esteja em uma casa de prostituição — onde não se exerça exploração sexual (em razão do parágrafo único) —  que tenha um proprietário e não se constitua como cooperativa, sem regulamentar, no entanto, a casa de prostituição. De que casa de prostituição se fala aqui?  Afinal, a definição de exploração sexual inclui apenas, além daquelas previstas no Código Penal, as presentes no artigo a seguir:

Art. 2º – É vedada a prática de exploração sexual.

Parágrafo único: São espécies de exploração sexual, além de outras estipuladas em legislação específica:

I- apropriação total ou maior que 50% do rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro;

II- o não pagamento pelo serviço sexual contratado;

III- forçar alguém a praticar prostituição mediante grave ameaça ou violência

Aquele então que possui casa de prostituição onde mulheres não são exploradas, que não use de grave ameaça ou violência e não fique com mais de 50% dos lucros da atividade estará fora de qualquer radar legal? Poderá exercer essa atividade? Como definir a atuação desse jeito, se a lei só reconheceria como atividade da profissional do sexo aquela exercida autonomamente ou em cooperativa?

Se não se quer proibir a existência de casas de prostituição – e concordo mesmo que não devam ser proibidas e que elas se diferem de locais de exploração sexual – há que se regulamentá-las também: quem pode ser proprietário? Em que condições? Qual a espécie de relação existente entre o proprietário e a profissional: trabalhista ou contratual?

O artigo 3º trata das condições da realização da atividade pela profissional do sexo. Seu parágrafo trata de definir outra coisa que não a regulada no artigo e define por exclusão: casa de prostituição é aquela em que não se exerce exploração sexual. Mas o que É, então, a casa de prostituição a ser admitida como lícita? Continuar deixando essas casas na ilegalidade é jogar essas profissionais nas ruas e aumentar a desproteção e o risco de que sofram violência. Por tudo isso, é preciso esclarecer os pontos abertos aqui, afinal, problemas como esse na redação podem fazer reforçar uma das críticas feitas à regulamentação, a de que regulamentar seria legitimar a mercantilização dos corpos femininos.

Vale reforçar: Regulamentar NÃO é legitimar a mercantilização. É atender uma pauta reivindicatória de uma categoria em busca de direitos e reconhecimento, sem esquecer que há uma rede de exploração sexual e tráfico de pessoas para esse fim. Nesse ponto vai muito bem a justificativa do projeto:

“O objetivo principal do presente Projeto de Lei não é só desmarginalizar a profissão e, com isso, permitir, aos profissionais do sexo, o acesso à  saúde, ao Direito do Trabalho, à segurança pública e, principalmente, à dignidade humana. Mais que isso, a regularização da profissão do sexo constitui instrumento eficaz ao combate à exploração sexual, pois possibilitará a fiscalização em casas de prostituição e o controle do Estado sobre o serviço.

Impor a marginalização do segmento da sociedade que lida com o comércio do sexo é permitir que a exploração sexual aconteça, pois atualmente não há distinção entre a prostituição e a exploração sexual, sendo ambos marginalizados e não fiscalizados pelas autoridades competentes. Enfrentar esse mal significa regulamentar a prática de prostituição e tipificar a exploração sexual para que esta sim seja punida e prevenida”. 

Regulamentar é conceder um direito e um lugar no Direito, reconhecer uma atividade profissional, permitir a fiscalização e controle dessa atividade, combatendo as ilicitudes da prática. Não esconde nem esquece da condição dessas profissionais e da existência de pessoas exploradas e, ao trazê-las para o Direito, permite o debate de políticas públicas.

Traz para o radar social e estatal: a prática lícita, impondo-lhe condições e limites; a prática ilícita que descumpre esses limites e a prática criminosa realizada mediante exploração e ou violência. Enquanto fora dele estiver essa atividade, como discutir políticas públicas no tema? Enquanto a prostituta for, para o ordenamento jurídico, apenas a vítima em alguns dos crimes previstos no Capitulo V do Título VI do Código Penal [9] (e esse “apenas” não quer dizer que não seja uma importante situação, mas sim que não deve ser a única situação), sujeito de direitos ela não será.

Primeiro, porque o tratamento pela exclusão ou pela negação — ou seja, o não reconhecimento da atividade como trabalho — muito pior do que conferir um não lugar a essas mulheres, coloca-as no lugar do não admitido. É um engano pensar que a ausência da regulamentação no Direito tem como consequência deixar essas mulheres fora dele. Elas estão lá, porque é na exclusão (e a partir dela) que o Direito constrói seus corpos válidos, seus sujeitos legítimos, suas atividades lícitas e aceitas.

A exclusão dá nome às prostitutas, define-as como o não válido, o abjeto, o ilegítimo, o ilícito, o não aceito. Mas dá nome sem registro e, com isso, as consequências desse nome ficam fora da possibilidade de regulação. Ao atuar pela exclusão, o Direito diz quais são os corpos e as atividades admissíveis: e os das prostitutas não serão. Estes corpos e essas atividades apenas importam quando objetificadas por uma exploração definida como crime e, como vítimas no sistema penal, não são permitidas a deliberar sobre a própria atividade ou argumentar sobre a exploração sofrida e não lhes é garantido nenhum espaço de autonomia sobre o próprio corpo. Não podem reivindicar que lhes deem um nome diferente desse que as mantém “fora”.

Segundo, porque o tratamento pela criminalização não garante direitos nem protege essas pessoas. O Direito Penal não é instância de garantia de direitos. A criminalização de condutas, apesar da teoria mais corrente sustentar que tem por função a proteção dos bens jurídicos mais importantes na sociedade, nada protege. O sistema penal incide apenas após a prática do fato delituoso, após a violação concreta do bem jurídico já haver ocorrido e, por isso, não serve para protegê-lo.

Podem vir aqueles que dizem que a existência da criminalização por si só já ajuda a prevenir os crimes e, por consequência, a proteger o bem jurídico. Ocorre que a tese da prevenção geral como função do Direito Penal e da pena não foi comprovada e nem mesmo é comprovável, é uma promessa não cumprida que corresponde muito mais a sua “função declarada” do que a sua função real e, por isso, não é possível mais sustentar o sistema penal como servindo para tanto.

Assim, sob o pretexto da proteção, deixamos de ouvir essas mulheres. Sob o pretexto da proteção, o sistema criminaliza a exploração, sem dar-lhes voz a respeito de qualquer outro aspecto da atividade que exercem. Sob o pretexto da proteção, o movimento feminista, muitas vezes, fala em nome de todas essas mulheres no lugar de lhes dar voz.

Foto de Wilson Júnior/Estadão.
Foto de Wilson Júnior/Estadão.

LEI COM NOME DE MULHER – GABRIELA LEITE, SIMBOLISMOS E MODELOS

O PL 4.211/2012 tem nome de mulher: Projeto de Lei Gabriela Leite. A homenagem ou referência a uma pessoa nomeando o instrumento legislativo tem sido um recurso bastante utilizado na produção legislativa recente. Nos últimos anos, mais ainda, tem sido comum essa prática com o uso de nomes de mulheres: Maria da Penha (Lei 11.340/2006), Joanna Maranhão (Lei 12.650/2012), Carolina Dieckman (Lei 12.737/2012), e agora, Gabriela Leite.

Há alguns riscos nisso e destaco aqui dois, um do ponto de vista geral da lei e outro específico quando se trata de mulheres. O primeiro é simples: leis são instrumentos gerais e abstratos de regulação de condutas. São criados a partir do reconhecimento da necessidade de regulamentação de uma categoria de fato ou de uma categoria de condutas ou de pessoas, e não de um fato concreto único, uma pessoa determinada ou uma conduta individual.

O uso de um sujeito específico como nome reforça um estereótipo ou modelo e permite o direcionamento da aplicação e interpretação da lei, não a todos os fatos ou pessoas que se encaixem na categoria regulamentada abstrata e genericamente, mas apenas para aqueles que correspondem ao modelo.

No caso especifico das mulheres, o perigo parece ser ainda maior, considerando a construção do gênero e seus papéis. E a mulher que não se identifica ou não se enquadra no modelo observado no caso Maria da Penha? Ou que tem uma história, um caso, uma identidade diferentes das que permitiram Joanna Maranhão a relatar o crime de que foi vítima?

Esse uso é perigoso e, por exemplo, gera interpretações como a de que a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) seja aplicável somente para os casos de mulheres vulneráveis e hipossuficientes, não sendo cabível quando aquela que alega ter sido vítima de violência é economicamente independente e autônoma. Nomear uma lei com o nome de uma mulher pode significar conceder ao intérprete um instrumento de definição não desejado pelo legislador mas implicitamente introduzido.

Nem toda prostituta é Gabriela Leite, uma mulher de luta, livre e consciente, que dizia que seu senso de liberdade era tão forte que quase a escravizava e que essa liberdade era a grande faceta da sua vida.

Nem toda mulher atuando nesse ramo, prostituta ou vítima de exploração sexual, tem a história de Gabriela: que lutou pela organização da categoria das profissionais do sexo, promoveu encontros nacionais de prostitutas, participou do movimento internacional, fundou a ONG Davida, idealizou a grife Daspu, escreveu o livro ‘Filha, mãe, avó e puta’,  e foi candidata a deputada federal pelo Partido Verde em 2010, defendendo o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, a união civil homossexual, o direito ao aborto e a regulamentação da prostituição.

Se o projeto pretende deixar claro que reconhece a distinção entre prostituição e exploração sexual e que protege as vítimas da última — e sei que essa é sua intenção — não pode fazê-lo usando de pessoas como símbolo e, com isso passando a mensagem de que usa um modelo único de mulher nessa situação: a mulher livre e autônoma, ciente de seus direitos e não explorada.

Gabriela é, sem dúvida, uma referência da militância das profissionais do sexo e de parte da militância feminista. Merece reconhecimento e homenagens. Dar a lei seu nome, contudo, não é o caminho adequado. [10]

NOTA FINAL

Por fim, quero dizer que este texto não representa um pronunciamento ou posicionamento oficial do grupo Blogueiras Feministas. Somos um coletivo horizontal e autogestionado, não tomamos posições universalizadas e permitimos que entendimentos dissonantes aqui se manifestem sempre. Este texto representa tão somente o meu posicionamento no tema.

REFERÊNCIAS


[1] Em termos jurídicos, as teses de dividem em Abolicionismo, Regulamentarismo e Proibicionismo.

[2] Por essa razão – por serem maioria – o texto usará o termo “mulheres” para se referir às profissionais do sexo, o que inclui mulheres cissexuais e mulheres transexuais, não se esquecendo, contudo, da prostituição exercida pelas travestis e pelos homens.

[3] PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

[4] MACKINNON, Catharine. Feminism Unmodified: Discourses on Life and Law, 1987.

[5] BARLETT, Katharine T. MacKinnon’s Feminism: Power on Whose Terms, 1987.

[6] Pesquisa realizada na cidade de Uberlândia-MG, pela Associação das Travestis e Transexuais do Triângulo Mineiro (Triângulo Trans), mostra que apenas 5% das travestis estão empregadas no mercado formal de trabalho, estando as demais na prostituição. 

[7] O Ministério do Trabalho e da Previdência Social reconhece a prostituição como ocupação. Porém, isso não significa reconhecer como profissão/trabalho: “A ocupação é a indicação das atividades que a pessoa desempenha e serve para colocá-la em um sindicato. Mas não há relação entre ter isso e haver regulamentação da profissão”. Referência: Centenas de projetos na Câmara preveem novas regras para profissões.

[8] O texto original da lei usa o termo no masculino.

[9] Digo alguns dos crimes porque, em vários deles, a pessoa prostituída não é vítima e, assim, não figura no processo penal nem como tal. É o exemplo do crime de casa de prostituição. Na verdade, na maioria desses crimes, a pessoa prostituída e sua voz não interessam ao processo e ao reconhecimento ou não da existência de crime. Apesar da reforma que o Título VI sofreu em 2009, designando como bem jurídico protegido a dignidade sexual – e aqui a dignidade deveria ser aquela das pessoas prostituídas — , a interpretação teórica e prática majoritárias ainda aplica esses artigos independente da alegação destas em não terem sua dignidade sexual violada.

[10] Pontuando e reforçando: minha crítica não é só à Lei Gabriela Leite, mas também à Lei Maria da Penha, Lei Joanna Maranhão, Lei Carolina Dieckman, qualquer lei com nome de pessoa e mais ainda qualquer lei com nome de mulher. Acho mesmo que essa estratégia cria modelos não desejados e implícitos e confere um instrumento aos juízes para usar a lei a parte do modelo. O caso Luana Piovani e a interpretação do TJRJ – interpretação muito usada também no STJ – de que a Lei Maria da Penha só se aplica a mulheres vulneráveis e hipossuficientes é um exemplo disso. Não tenho como estabelecer uma relação de causalidade entre uma coisa e outra e nem quero: mas se qualquer tema relacionado a mulheres já é tão inspirado por estereótipos, padrões, modelos; pra que fornecer mais um? Pra que correr o risco? O título do texto serve a chamar atenção para questão do uso do nome como estabelecimento de um modelo, não para desqualificar Gabriela – não faria isso de forma nenhuma, muito menos em razão de ela ter sido uma militante, ter estudado, ou por qualquer outro motivo. Ou seja, o problema não é Gabriela inspirar a regulamentação, nem o histórico dela. O problema é dar instrumento para que atores do Direito passem a interpretar mulheres sexualmente exploradas como profissionais do sexo, por exemplo.