Direitos sexuais e reprodutivos, saúde das mulheres e a política de violência sexual

Texto de Leticia Alves Maione para as Blogueiras Feministas.

Gostaria de começar a falar sobre direitos sexuais e reprodutivos citando um texto:

“Uma história que começa com uma ampla variedade de civilizações em que o lugar da mulher, o número e a forma dos gêneros, as práticas sexuais aceitas e as condenadas eram tão diversas como as línguas, os sistemas sociais e os cultos. E continua com a violência da conquista que, a sangue, fogo e Bíblia, instaurou a ordem judaico-cristã. Nossa história é também a do genocídio dos escravos e das escravas; a dos idiomas, das identidades de gênero, das formas de desejar e de parir (ou não) que ficaram para sempre nos porões dos navios. É a violência que fundou nossos Estados à ponta de espada, e nossa mestiçagem à ponta de violação. A tutela exercida sobre as raças, os sexos, as idades, os desejos e os corpos “inferiores”, com a lei, com o bastão e com a cruz. Nossa história é violência e tutela, mas também resistência”. Manifesto por uma Convenção Interamericana dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos, 2006: 6.

Eu trago essa parte do manifesto para chamar a atenção de como debater e pensar os direitos sexuais e reprodutivos é também resgatar as histórias de resistências de mulheres indígenas e mulheres negras à colonização, ao estupro colonial, entre as demais práticas de violação e assédio sexual, que também subjugou mulheres brancas à rígida moral sexual católica e outras violências. Essa abordagem e forma de reescrever a nossa história no Brasil é fruto, sobretudo, do trabalho de feministas negras e do feminismo anti-racista, que enxerga como os componentes de gênero e raça/etnia foram construídos para criar e reforçar as hierarquias de poder e exploração capitalista,  que miram os corpos das mulheres como território privilegiado para que esses processos e relações de desigualdade possam se dar.

Por isso, não é exagero se dissermos que o mote “o nosso corpo é o nosso território” é talvez um dos dizeres mais interessantes e críticos para falarmos sobre como a desapropriação de nossos territórios locais, na cidade ou no campo, de nossos recursos naturais, econômicos, políticos, culturais, e a retirada de direitos se utiliza e ao mesmo tempo, impacta, especialmente, os corpos e a saúde das mulheres.

Nesse sentido, outra contribuição do feminismo negro foi a visibilização de como especialmente as mulheres negras, entre todas as mulheres, foram relegadas a escala socioeconômica mais baixa em relação ao “reconhecimento, rendimento, qualidade de vida e direitos, inclusive os direitos sexuais e reprodutivos” (1), sendo, porém as que mais são responsabilizadas pelas tarefas reprodutivas. Todos esses elementos: o reconhecimento do valor imaterial e material do nosso trabalho, o bem-estar econômico, social, psicológico, a experiência de relações intimas e familiares livres de violência são partes constitutivas da saúde das mulheres, segundo os parâmetros internacionais de direitos humanos.

Afinal, quantas de nós, de nossas amigas ou familiares já não sofreram de algum problema de saúde mental, física ou sexual por causa de uma relação afetiva abusiva ou por causa da exploração de duplas e triplas jornadas de trabalho? Sem falar de uma cidadania negada que compartilha a maioria das mulheres brasileiras por não ter acesso a recursos informativos em relação ao seu próprio corpo, de métodos e técnicas para acessar uma vida sexual prazerosa e saudável, para poder decidir sobre o próprio corpo e continuar reiteradamente decidindo ao longo de toda sua vida.

Mas o que seriam os direitos sexuais e reprodutivos, e o que eles tem a ver com a saúde das mulheres?  “Em defesa da autodeterminação reprodutiva das mulheres; pela desconstrução da maternidade como um dever ou como destino obrigatório, pelo poder de decidir ter ou não ter fi lhos, quando e com quem tê-los, pelo direito ao aborto legal e seguro, contra a homofobia/lesbofobia, por liberdade e pelo direito ao prazer sexual, contra a ditadura heteronormativa” (2) – assim concebemos, no final dos anos 80, o conjunto de direitos denominado direitos sexuais e reprodutivos (DSDR). Eles compreendem a reivindicação pelo acesso aos métodos, meios, técnicas e informações, médicas ou não, que garantem às mulheres o controle sobre seu sistema reprodutivo, e o livre exercício de suas práticas e identidades sexuais. Portanto, a dimensão da saúde para esse conjunto de direitos aparece como uma das esferas de implementação e garantia deles, sendo isso tão caro para a preservação da nossa vida e contra a violência contra as mulheres.

Brasília - Marcha das Mulheres Negras, 2015. Foto de Antonio Cruz/Agência Brasil.
Brasília – Marcha das Mulheres Negras, 2015. Foto de Antonio Cruz/Agência Brasil.

Contudo, ao mesmo tempo que temos de um lado o avanço das lutas das mulheres pelos seus DSDR, temos também o ataque sempre atualizado daquelas estruturas de poder patriarcais, racistas, capitalistas e heternormativas das quais já falamos. No caso do Brasil, a atualização se faz principalmente através de um projeto de desenvolvimento nacional, que valora o progresso e crescimento econômico na contramão da distribuição de renda e da justiça social, com a minimização da responsabilidade do Estado como fornecedor de serviços básicos para a reprodução da vida.  Nossa história está marcada pela disputa emancipadora e conservadora desses direitos. Desde a época da colonização, com o comportamento e a violência sexual do período escravagista, passando pelas disputas legislativas e discursivas sobre planejamento familiar e  esterilização forçada e controle demográfico nas décadas de 80 e 90.

Mais recentemente, nos anos 2000, as iniciativas dos movimentos junto a algumas aliadas parlamentares para passar iniciativas relacionadas ao  direito ao próprio corpo e a legalização do aborto demonstra que o atual momento de repressão das conquistas já realizadas e dos avanços buscados no campo dos DSDR não é um momento isolado e está longe de ter seu desfecho ou força vitoriosa. Um estado, que cada vez mais legitima as formas patriarcais e clientelistas de fazer e se relacionar na política e que usa os DSDR das mulheres como moeda de troca nessas relações está praticando uma política de violência sexual contra as mulheres.

Devemos trabalhar, então, para que se revele, de fato, o caráter sexual central do atual debate sendo feito: os estereótipos de gênero na política, a opressão de diferentes formas de viver a sexualidade, o controle reprodutivo de forma diferenciada para as mulheres negras e brancas, a militarização do estado e da sociedade são elementos dessa política sexual que se torna cada vez mais gritante. Apesar das oportunidades de mobilização e denúncia que temos sido compelidas a criar diante de tantas violações, a naturalização com as quais as noções de gênero, e de masculinidade x feminilidade servem à construção da politica nacional e da própria analise politica dos fatos é muito difícil de ser quebrada, pois ela ganha espaço ou é contestada através de exercícios cotidianos de poder, tal como vemos em relação aos direitos sexuais e reprodutivos. Quem sabe pode haver mais relação do que parece entre as nossas politicas locais de resistência – como o aumento de escrachos a agressores sexuais e psicológicos, os beijaços, a visibilidade cada vez maior de mulheres lésbicas nos diferentes espaços políticos, entre outras formas – e alguns dos elementos por trás da atual crise de disputa política?

Referências

(1) CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. In Revista Estudos Feministas. p. 171-188. Florianópolis: cfh/cce/UFSC. vol 10 n1/2002.

(2) OLIVEIRA, Guacira Cesar de; CAMPOS, Carmen Hein de. Saúde Reprodutiva das Mulheres – direitos, políticas públicas e desafios. Brasília: CFEMEA: IWHC, Fundação H.Boll, Fundação Ford, 2009.

Nota

Esse texto é resultado da contribuição a Mesa de Debate: Desafios para pensar a saúde da mulher – conjuntura e praticas integrativas, durante o Encontro Popular de Saúde das Mulheres da Zona Oeste, organizado pelo Comitê Popular de Mulheres da Zona Oeste, em 12 de maio de 2016, no Rio de Janeiro.

Autora

Leticia Alves Maione… Parafraseando Chiquinha Gonzaga: “Sou feminista e não quero negar.” Gosto de discutir relações geracionais e direitos das mulheres jovens a partir da perspectiva feminista. Sou militante pelos direitos sexuais e reprodutivos, e pela legalização do aborto. Gosto de escrever, de conhecer e conversar com outras mulheres, de andar de bicicleta, de fazer trilhas, viajar, estar em meio a natureza, e quando consigo fazer tudo isso com frequência, me sinto renovada e inspirada para enxergar no horizonte um mundo mais próximo ao feminismo.