Esses dias, estávamos comentando no nosso grupo de e-mails, das Blogueiras Feministas, sobre como agir quando o comportamento de muitas pessoas na nossa própria família é machista, racista e homofóbico. Aceitar tudo sem responder a nada? Brigar com todo mundo e virar a cara? Discutir apenas de vez em quando? Tirar sarro de tudo? Chorar?
Resolvi trazer um pedacinho da minha experiência para vocês hoje, na verdade, duas cenas recorrentes na minha história familiar relacionadas às mulheres e à cozinha que, desde a infância, tocam-me profundamente. Falando da minha família, acredito que eu também esteja falando de outras famílias por aí.
– Quando eu e meus primos e primas éramos mais novos, costumávamos ir ao sítio dos meus avós em um feriado prolongado ou para passar parte das férias. A gente sempre levava nossos amigos e ficava ainda mais divertido juntar esse monte de crianças e adolescentes, pois as brincadeiras rendiam bastante. Minha avó encabeçava a trupe, ao lado de sua inseparável vizinha, e meus tios e tias também iam com frequência. Minha mãe ia quando não era dia de trabalho. Eu me lembro bem daquela mesa farta no café-da-manhã, almoço e janta, com bolos entre uma refeição e outra, tudo devidamente cozinhado pela minha avó e pelas outras mães. Quando atingimos uma idade razoável, lá pelos 12 anos, já era aceitável que as ajudássemos na hora da limpeza, pois, do contrário, passariam o dia todo cozinhando e lavando para a gente sem ganhar um tostão em troca. O meu problema não era com o fato de lavar louça, mas nunca consegui aceitar que minha avó declarasse que “apenas as meninas tinham que lavar a louça”, por que isso é “serviço de mulher”. Os meninos se levantavam da mesa e iam correndo brincar lá fora, na grama e debaixo das árvores, com bola ou de pega-pega, enquanto eu e minhas primas tínhamos que ficar lavando os pratos e garfos em que todo mundo colocou a boca? Quando minha avó falava isso, os meninos respondiam “é isso aí” em tom de brincadeira, como que se diz: “Me livrei dessa, me dei bem”. Eu ficava indignada, às vezes minha reação era sair correndo e ir brincar, às vezes eu lavava apenas algumas louças e saía chamando os meninos para lavar também, mas sem sucesso; em outras, eu ficava com dó de deixá-las fazendo tudo sozinhas e ia lavar também, mesmo frustrada comigo mesma que havia “cedido ao machismo”; frustrada com essas mulheres da minha família, que se submetiam a tal situação; com os meninos, que tiravam sarro da gente; com os homens adultos, meus tios, que não se importavam nem um pouco com o que estava acontecendo.
– Nós crescemos e eu, minha irmã e minhas primas mudamos de cidade a fim de fazer um curso universitário. Embora a família tenha se distanciado bastante, minha avó faz questão de ainda manter certos almoços e jantares em algumas datas especiais e comemorativas, em particular as religiosas. Nesses almoços, desde que eu me entendo por gente, as mulheres passam a manhã inteira cozinhando o prato que vão levar e, dado o horário, chegam com seu respectivo núcleo familiar na casa da minha avó ou da minha tia. As mulheres dirigem-se diretamente para a cozinha e, os homens, para a sala ou sentam-se em volta da mesa semi-posta. As mulheres terminam de preparar a comida, colocam a comida na mesa, enquanto homens e crianças esperam sentados, e sentam-se a seguir. Minha avó não se senta nunca, apenas quando todo mundo já terminou de comer – ela toma para si a obrigação de zelar pelo almoço perfeito, para que não falte nada a ninguém. Satisfeitos, os homens se levantam e vão para a sala conversar e ver TV e as mulheres voltam para a cozinha lavar a pilha de louças. Os homens conversam na sala, as mulheres, na cozinha. Tempo livre só é livre para os homens e não existe estranhamento de nenhum tipo, pois sempre foi assim.
Agora, eu pergunto: como lidar com uma família assim? Logo eu, que acredito que todas e todos devemos aprender, desde cedo, o que é genuinamente apreensível, a saber: cozinhar, lavar louça e roupa, passar, limpar a casa, trocar lâmpadas queimadas, manejar ferramentas a fim de realizar pequenos consertos no encanamento, afastar baratas e ratos de dentro de casa, brincar com todos os tipos de brinquedos, casinha, boneca, bola, carrinho, jogos de tabuleiro entre outros…
Como estratégia, eu não faço nem o tipo “abaixo a cabeça e deixo quieto” e nem o tipo “brigo com todo mundo e não olho mais na cara”. Toda a coisa implica saber quando estou sendo, de fato, contundente na empreitada de apresentar o meu ponto-de-vista. Quando estou com os meus parentes, não são em todos os momentos que considero interessante apresentar a minha visão feminista sobre as coisas, pois se eu ficar taxada de “chata”, as pessoas vão deixar de me ouvir e nunca chegarão a fazer nenhuma reflexão aprofundada sobre esse assunto. Ser apenas chata e não ser contundente é perda de tempo, não adianta.
Sei que, em muitos casos e, em particular, com os mais velhos, as discussões que eu tento trazer entram por um ouvido e saem pelo outro. Eu sei. Sei, também, que muitos ridicularizam minha posição e, geralmente, são as mulheres mais velhas que fazem isso. Percebo ainda, e com enorme desânimo e pesar, que, em alguns casos, essa mentalidade vêm sendo reproduzida. Observo algumas de minhas primas, que cresceram comigo, fazendo as mesmas coisas que minha avó sempre nos conclamou a fazer – nós, meninas. Eu adoro as minhas primas, mas há uma distância que agora nos separa nessa sentido, uma espécie de muro invisível, como se tivéssemos tomado rumos diferentes.
A questão é mais delicada do que parece e exige sensibilidade para perceber que estão em jogo a expectativa-frustração e os sentimentos. Os sentimentos, às vezes, ficam divididos e confusos, vão de raiva à culpa em segundos. Há alguns parentes que gosto menos e, portanto, importo-me menos com o que pensam e com o que vão pensar do que eu penso. Mas e a minha avó de 80 anos? E se eu discutir com ela e deixá-la doente? Meu pai, filho dela e morto em 1993, será que ele aprovaria que eu um dia eu chegasse a discordar de alguém mais velho na família, sendo eu neta, aquela que “não sabe nada da vida”? Confio nas minhas convicções, mas não dá para chegar impondo a minha opinião a torto e a direito, há uma infinidade de fatores a serem avaliados, em particular quando pessoas próximas estão envolvidas. Depende do caso.
Como vejo que muitos não vão mudar – e nem eu mudarei -, o que faço é tentar deixar claras as minhas opções de vida e exigir respeito, embora nem sempre eu seja respeitada. Na maioria das vezes, digo: “eu penso de um jeito, você pensa de outro. Vamos mudar de assunto?”. Eu escolho discutir apenas de vez em quando, às vezes com humor, às vezes mais séria. No entanto, sem agressividade com as palavras, para não afastar ao invés de acolher.
Mas, olha, esse trabalho de formiguinha até que dá frutos. Em uma das raras discussões um pouco mais sérias que tive com a minha avó e com minha tia, minha prima de 16 anos entrou no debate e, para minha surpresa, a meu favor. E a formiguinha aqui ficou feliz!