Capitalizando nossos corpos

Outro dia, me caiu nas mãos este artigo, do jornal inglês The Guardian, na verdade, uma critica literária, ao estudo da pesquisadora inglesa Catherine Hakim, Honey Money: The Power of Erotic Capital.

 O artigo, escrito pela escritora Elizabeth Day, faz uma objeção pesada às conclusões de Hakim, que coloca, como principal objetivo de uma mulher (não li o estudo, mas pelo que constou no artigo, e consta também na capa do livro de Catherine Hakin, com mãos femininas, bem cuidadas e de unhas pintadas) fazer um uso proveitoso o que ela chama de “capital erótico”.

Capa do livro da inglesa Catherine Hakim

O que seria este “capital erótico”, Hakim explica: “uma combinação nebulosa mas crucial de beleza, sex appeal, habilidades sociais e boa apresentação… que faria alguns homens e mulheres uma companhia agradável, atrativa para todos os membros de sua sociedade, e especialmente, para o sexo oposto”

De acordo com o portal RBS, onde encontrei um artigo sobre o “capital erótico e quais são suas características, baseado no livro de Hakin, o conceito englobaria:

:: Beleza: conceito variável no tempo e cultura, mas sempre valorizado. A ideia atual destacaa fotogenia, o que leva a valorização de homens e mulheres de olhos grandes, lábios carnudos e pele bronzeada.

:: Atratividade sexual: tem a ver com um corpo sexy, o estilo e a personalidade. Ou seja, a beleza pode ser percebida numa foto, mas o jeito como a pessoa fala e se move, não.

 :: Atratividade social: é uma mistura de graça, charme e outros dotes sociais, como a habilidade para deixar o outro à vontade, feliz e com vontade de conhecer você, possivelmente, desejando você também.

:: Vivacidade: aqui também trata-se de um mix de condicionamento físico, energia social e bom humor.

:: Apresentação: o modo como você se veste, usa maquiagem, o estilo do cabelo e acessórios é o que dá a uma pessoa uma boa apresentação.

:: Sexualidade: a categoria é ampla e inclui competência sexual, energia, imaginação erótica, entre outras. Não tem relação com libido e se define em particular.

:: Fertilidade: segundo a autora, a característica só vale para mulheres e em certas culturas que enxergam dotes especiais nas mães de crianças saudáveis e bonitas.

De forma interessante, e reveladora, mais uma vez fica claro que o conceito se aplica mais às mulheres que aos homens, ou pelo menos, assim tem sido entendido, já que, significativamente, a maioria das matérias brasileiras sobre o livro encontra-se nas categorias dirigidas ao público feminino, como o referido portal RBS, que tratou do assunto na coluna Donna, categoria “relacionamentos”.

 Como já disse a autora da crítica do Guardian, Elizabeth Day, parece óbvia a afirmação de que beleza e uma dose substancial de charme podem ajudar a ser bem sucedido. E a própria autora do livro Honey Money, elaboradora da tese do “capital erótico”, reconhece que se trata de uma afirmação óbvia, surpreendendo-se de que não tenha sido tratada antes.

Ora, já refuta Elizabeth Day:

Perhaps because it has never needed to be? Perhaps because in placing so much emphasis on how we appear (both aesthetically and socially) we are implying that style is more important than substance, that it doesn’t matter what you say as long as you say it with a tooth-whitened smile? Perhaps because Hakim’s ideal society would be one where cosmetic surgery was the norm, where sexuality was flaunted and where the ugly, the overweight, the depressed or the mentally ill became trampled-on Untermenschen who worked for the public sector (“All studies find a higher concentration of attractive people… employed in the private sector than in the public sector,” Hakim notes breezily).

Talvez porque nunca foi necessário? Talvez porque colocar tanta ênfase na aparência, tanto estética quanto social, estaria implicando que estilo é mais importante que substância, que não importa o que se diz, desde que seja dito com um sorriso clareado e perfeito. Talvez porque a sociedade ideal de Hakim seria uma onde a cirurgia cosmética seria a regra, onde a sexualidade seria exibida de forma ostentosa, e onde as pessoas feias e acima do peso, os deprimidos ou doentes mentais seriam chutadas, esses “povos inferiores”, Untermenschen (da ideologia nazista), para trabalharem no setor público, onde Hakim alega que todos os estudos mostram uma alta concentração de gente menos atraente que no serviço privado. – (tradução livre pela autora do post)

No artigo do Guardian, Elizabeth Day faz uma crítica ferrenha ao livro e às conclusões da autora.

Segundo Hakim, o “patriarcado”, as “feministas” e o “cristianismo”, juntos conspiraram para garantir que as mulheres não se apropriassem dessa considerável força que é o capital erótico. (???) Mistura no mesmo pacote conceitos antagônicos, demonstrando desconhecimento das teorias feministas em geral, fazendo o que em geral é feito: estereotipar e ridicularizar os feminismos.

Ainda, Hakim afirma que “as feministas sofreram tanta lavagem cerebral pelo patriarcado que são incapazes de entender como a sexualidade e o capital erótico podem ser fontes de poder feminino”. E ironiza Elizabeth Day: “se eu for uma feminista e usar brilho labial, em que isso me transforma? Uma criação da minha própria imaginação?”

Quando li o artigo, me lembrei da Letícia, do blog Cem Homens, uma pessoa que vem sendo alvo da artilharia pesada do controle social brasileiro, por ousar demonstrar uma atitude de “ostentação sexual”, não encontro outra palavra. Lola e Cynthia já escreveram sobre os ataques covardes, não de trolls anônimos, mas de uma grande emissora de TV, a mesma que acha normal mostrar cenas de homofobia e violência doméstica mas teme chocar os mais “sensíveis” da digníssima classe média branca heterossexual e católica ao mostrar a afetividade homossexual ou colocar negros e negras em posições melhores que as subalternas.

E fico pensando no “estudo” de Hakim, e em como no Brasil a gente vive essa contradição… somos um país que vende no exterior a beleza e a sensualidade femininas, mais do que qualquer país de que eu tenha notícia. A publicidade de uma sandália de dedo, recentemente usou dessa mesma fama, da beleza e da sexualidade da mulher brasileira, estereotipada, como mote para uma de suas campanhas.

Esse mesmo país, essa mesma sociedade, que faz uso da sexualidade da brasileira para vender sua imagem no exterior, aqui, reprime qualquer manifestação de sexualidade livre.

Aqui, e infelizmente, creio que em quase todo lugar, uma mulher não pode ter êxito na carreira senão as custas de sua sexualidade e de seu uso direcionado. Muitas vezes, a voz comum é que  se uma mulher é promovida, deve estar “dando” para o chefe. Se a chefe, no caso, for mulher, obviamente, deve ser lésbica, e a promovida também “deu”  (dar, oferecer, submeter-se… sempre na posição de passividade).

Experimente usar livremente da sua sexualidade. Jamais.

Como deixa aparenta deixar claro o estudo, a sexualidade e o capital erótico não devem ser usados para o prazer feminino, mas tão somente para obter coisas, bens, relações, pessoas. Obter ganhos.

A beleza, o estilo, a simpatia, o charme. Tudo transformado em uma mercadoria de troca.

Capitalizando nossos corpos - somente assim nos é permitido usar nossa sexualidade. Imagem: Alamy. Matéria do The Guardian.

Claro, disso a gente já sabia. O que a inglesa Catherine Hakim aparentemente fez, foi simplesmente “dar nome aos bois”.

Mas foi mais do que isso: quando um fato do dia a dia é revestido de uma estrutura “científica”, assume ares de “verdade absoluta”, nesse fetichismo das ciências em que vivemos desde o século retrasado.

E podemos observar que, via de regra, o fetichismo da ciência encontra-se a favor do status quo: capitalista, eurocêntrico, cristão. As ciências já foram utilizadas para justificar a inferioridade de certas raças e etnias, a opressão das mulheres, a subalternidade das homossexualidades. *Como trabalho na área do Direito, sempre me veem à mente Lombroso e sua teoria do Homem Deliquente.

Quando uma mulher age livremente, disponde de sua sexualidade como deseja, ela abala os alicerces do capitalismo. Como assim, sexo sem procriação? Como assim, ela não está nem obtendo “lucro” com o sexo que pratica (esse lucro,  na cabeça de alguns, pode ser financeiro, como alguns propõe que Leticia seria mais aceitável se fosse prostituta, afinal, prostituta é paga, ou emocional – conseguir um marido, um provedor, ou mesmo um emprego.). Abala os alicerces do capitalismo porque abala uma das estruturas sobre as quais ele se sustenta: sucessão hereditária. Se uma mulher dispõe livremente de seu corpo – e de seus óvulos – como garantir que a prole, que herdará o mundo, é de fato a prole do “pater famílias”? ( Agenita Ameno fala sobre isso no livro “Crítica à tolice feminina”, obra na qual propõe uma sociedade de usofruto, e não de sucessão).

Geisy e o vestido da discórdia

Mas, ora ora, como são hipócritas: lembram-se de Geysi Arruda, da UNIBAN? Se vestia livremente, de forma “despudorada”. Foi linchada moralmente. Recebeu apoio, e em seguida, usou a fama e “

capitalizou” seu corpo e seus minutos de fama. O que aconteceu? Apedrejada moralmente… todos já sabiam que era isso que ela queria…

Imagino se Leticia um dia vier a público, sem o pseudônimo, e realmente “capitalizar” seu erotismo. Alguma dúvida de qual será a reação de nossa sociedade?

 Não sei como fazer isso, ainda estou engatinhando nas teorias acadêmicas, nos diversos feminismos. Mas, de uma coisa, cada dia me convenço mais: o capitalismo É inimigo da igualdade. E se o feminismo É a busca da igualdade, e eu acredito que seja, feminismo e capitalismo SÃO incompatíveis.

* O livro ainda não foi traduzido, e não encontrei em PDF. No entanto, o artigo que lançou a teoria, publicado na European Sociological Review, em março de 2010, está disponível, em inglês.

up-dating: gente, o link quebrou, e agora, qdo tento abrir a revista, eles estão pedindo senha e cadastro. Vou tentar achar de novo, livre, e posto outro link, ok?