O corpo da mãe

Entre as diferenças biológicas entre homens XY e mulheres XX¹, a mais significativa, a que justifica boa parte da opressão cultural a que as mulheres estão sujeitas, é o fato de ser no corpo delas que os fetos são gerados. Ainda que sem o gameta masculino não haja possibilidade de fecundação, do ponto de vista estritamente biológico o papel masculino pode se encerrar (e por vezes, de fato, se encerra) ali, quando o espermatozóide encontra o óvulo.

Uma vez fecundado este óvulo começa o processo que para algumas pode ser um sonho, para outras um pesadelo, porque se o processo é o mesmo há milhares de anos, as mulheres e suas condições podem ser muito diferentes. Desnecessário falar da situação ideal de uma gravidez, quando ela é planejada ou, ainda que inesperada, bem recebida. Mas para muitas mulheres a descoberta da gravidez é o momento de tornar-se, segundo nossa legislação, criminosa, já que a partir do momento em que um óvulo fecundado se instala em seu útero, ela passa a ter seus desejos e vontades submetidos a um ser que, embora vivo, tardará ainda longas semanas a  ter seu sistema nervoso formado – e enquanto isso será incapaz de sentir dor ou a compartilhar da angústia da mulher que o gera. Interromper voluntariamente uma gestação no Brasil é crime, mas não é na maior parte dos países desenvolvidos, sempre bom lembrar.

Imagem: The Shape of a Mother

Mantida a gestação, celebrada ou não, é a mulher quem vai sofrer os efeitos físicos das alterações hormonais que, como uma loteria, podem ser prazerosas (maior libido, pele macia, cabelos brilhantes) ou extremamente desagradáveis (enjôos constantes, inchaços, queda de pressão). Importante também lembrar que a legislação brasileira obriga pais a registrarem crianças nascidas e pagarem pensão alimentícia, mas não os obriga a nenhuma solidariedade à mulher gestante. Logo, desejando ou não o bebê que virá, enquanto o pai pode só dar notícias quando intimado por um oficial de justiça, a mulher não pode fingir que não está grávida.

As mulheres estão sujeitas ainda a uma violência cultural: serem maltratadas por profissionais de saúde durante exames pré-natais e o parto. Pesquisas revelam que mesmo em hospitais privados estas agressões acontecem.  As mais agredidas são as mais jovens, mais pobres e, como sempre quando se trata em estatísticas assim, as negras. São as meninas pobres e negras da periferia, as mesmas sujeitas a morrerem num aborto mal-feito, as que mais sofrem nas mãos daqueles que deveriam tratá-las, não condenar sua sexualidade. Muitas, traumatizadas, acabam deixando de fazer os exames pré-natais com medo de novas humilhações. Outras, como Alyne Silva Pimentel, cuja morte por negligência médica levou o Brasil a ser condenado por violar os direitos humanos, são vítimas fatais de negligência. Além dessas há violência silenciosa, mas igualmente importante que é a ausência de protagonismo no próprio parto, que já foi tratada aqui. Cabe repetir aqui, mas uma vez: por mais que sejam presentes, companheiros e atenciosos, os pais não têm sua saúde e sua vida ameaçadas ao gerarem um bebê.

Uma vez nascida a criança, a mulher sofre uma nova pressão, reforçada pela mídia: para voltar a forma física de antes do parto. Sim, há mulheres, as que estão na mídia com frequência, que conseguem emagrecer depois de poucas semanas. Não gosto de dizer que não são mulheres “de verdade”. São sim, como eu você. Mas cada mulher é única, cada gestação é única, cada corpo é único. Se o corpo não é mais o mesmo, se não responde a dietas e exercícios, ou ainda se a dona do corpo está ocupada demais cuidando de uma nova vida pra se dedicar a emagrecer, isso não deveria ser motivo de vergonha.

Imagem: The Shape of a Mother

Se há algo que me entristece é saber que uma mulher é pessoalmente cobrada, para além das pressões da mídia, para corresponder a um ideal de beleza que lhe é inatingível. Mas é ainda mais triste quando a pressão é para que o corpo não conte uma história que não pode ser negada. Não dá pra deixar de ser mãe. Sim, há corpos que não sofrem tantas mudanças. Não sou uma hipócrita que condena a vaidade. Acho bem normal quem ganhou 20 quilos querer perder 20 quilos. O que acho triste é que estes 20 quilos, as estrias e as cicatrizes sejam vistos de maneira isolada. Mais do que ser apreciado ou corresponder a expectativas de maridos e companheiros, nossos corpos são protagonistas de nossa história. E o corpo de uma mãe viveu uma história muito intensa. É triste e injusto desprezá-lo por isto.

¹ Só pra lembrar que mulheres e homens trans têm outras particularidades.

As fotos deste post são tiradas do site The Shape of a Mother. É um projeto lindo, que infelizmente não está traduzido para o português, em que mulheres contam sua história e postam fotos para juntas aprenderem a olhar para seus corpos com mais generosidade e menos julgamento. Recomendo a visita.