Minha cidade, novamente, sofreu com as cheias. Já na quinta-feira de manhã, cheguei ao trabalho e soube que todas as aulas foram dispensadas nas escolas, as principais ruas estavam alagadas e 5 abrigos já haviam sido ativados para acolher os desabrigados.

Para quem viu o que aconteceu em 2008, pensar na possibilidade de a tragédia se repetir apenas 3 anos depois dá um desespero incalculável. Fiquei imediatamente pensando em tudo que eu poderia fazer para minimizar o estrago. Não que eu tenha muito poder sobre a força da natureza, mas tenho um amor incondicional pelos seres humanos – especialmente aqueles vulneráveis.
Ainda na quinta-feira à tarde, o acesso de Gaspar para Blumenau estava praticamente interditado, os ônibus estavam rodando apenas em alguns trechos e era impossível falar no celular pq as linhas todas estavam congestionadas. A estação de tratamento de água estava prestes a parar de funcionar. Já havia 17 famílias em abrigos. E eu em casa, pensando no que fazer, por onde começar. Chamei meu parceiro de escotismo. Vamos para a Rua XV! E fomos.
Já sabia que no quartel tava uma loucura e eles estavam dando suporte pros abrigos. Voltando pra casa pelo morro da Companhia passei por um caminhão do exército e me deu um arrepio na espinha, odeio ver as viaturas na rua porque isso só acontece quando a coisa tá feia. Tipo cena de guerra.
Na Rua XV, decidimos ajudar alguns lojistas a retirar as mercadorias das prateleiras para que não fossem atingidas pela água. Depois repensando minhas atitudes acabei me arrependendo de fazer isso, fico pensando em quantas famílias eu poderia ter ajudado a levantar seus móveis, suas roupas, a levar para um lugar seguro. Sim, eu exijo muito de mim mesma, e fico o tempo inteiro repensando minhas escolhas. Fodam-se as mercadorias, fodam-se os sacos e sacos de tintura de cabelo que eu salvei em uma loja de cosméticos. Preferia ter salvado um saco de roupas, que vale bem menos financeiramente mas talvez fosse tudo que uma das famílias atingidas tinha.
Saindo da XV, tentamos ir até nosso Grupo Escoteiro, mas já não havia passagem. Sabemos que lá é um abrigo que geralmente é ativado, e é nossa casa, então nada mais coerente do que ficarmos lá. Infelizmente não pudemos. Então fomos para um abrigo aqui perto de casa, no bairro Vila Nova… Muita gente já estava lá, umas 30 pessoas, poucos colchões, quase nenhuma coberta… Comida naquela noite veio só para as crianças… Adultos ficaram com fome mesmo. Faltava tudo. Aquelas pessoas perderam tudo. Saíram correndo, com a roupa do corpo. Não tinham nem roupa íntima para poder tomar um banho. Quando deu o toque de recolher, voltei para casa. Mas meu coração não sossegava. O que mais eu podia fazer???
Comecei a divulgar pelo twitter as coisas que estavam faltando no abrigo, a pedir doações. Logo já tinha uma lista de 10 pessoas para coletar doações no dia seguinte.
Na sexta, cheguei no abrigo com mais uma amiga voluntária. Ficamos responsáveis pelas doações de roupas. O cara de um restaurante anexo ficou responsável pela comida. Duas abrigadas faziam café e cuidavam da cozinha. O Rotaract de Blumenau ficou com a recreação das crianças. A assistente social fez uma escala para revesar limpeza do banheiro e do abrigo em geral. Um trabalho de equipe lindo, desses que dá vontade de chorar só de ver. Todos os voluntários tentando levar um pouco de paz àquelas pessoas, tão sofridas.
Eu tentava manter em mente que eles eram meus clientes. Porque tudo que eles NÃO precisavam era ser maltratados por alguém cansado, estressado ou mal humorado. Então, mesmo com o coração arrasado, era sorriso na cara e um belo Posso te ajudar? Que roupa você quer? Qual tamanho? Gostou dessa? Com certeza eles foram muito melhor tratados do que eu fui hoje num passeio rápido ao shopping – onde as vendedoras estão ganhando pago para atender bem.
Trabalhei na sexta e no sábado das 8h as 22h, e foi tenso… Na sexta houve uma ocorrência muito, mas muito chata. O sargento responsável pela segurança do abrigo teve q expulsar um bêbado usando uma daquelas maquininhas de choque. E eu sou muito sensível mesmo, e não sei lidar com violência, não consigo assistir indiferente. E chorei muito, e fiz uma daquelas cenas dramáticas, saí correndo atrás do bêbado e da mulher dele com uma coberta. Já que eles iriam dormir na rua, que pelo menos não passassem tanto frio.
As doações não paravam de chegar. Depois de tantas tragédias, tantas enchentes, o povo já desenvolveu uma consciência solidária muito eficiente. Foi o dia inteiro recebendo doações, dobrando, separando em categorias. Mas também teve muita gente sem noção, que doava roupas que mais pareciam panos de chão, e doaram muitas, MUITAS roupas de banho. O que achei falta de noção e um pouco de maldade.
Na sexta a tarde já estávamos “auto-suficientes”. Tudo em boas quantidades, tudo que pedimos pelo twitter e facebook (incrível como as redes sociais foram eficazes) foram chegando no decorrer do dia, comida, produtos de higiene pessoal, colchões, roupas, muitas roupas… Aí era só esperar as águas baixarem. Nenhuma casa foi atingida pelos deslizamentos dessa vez. Todos do abrigo perderam tudo, mas ficaram com as casas pelo menos. Fiquei muito feliz com a força dessa gente. Em nenhum momento vi pessoas desesperadas, chorosas, melancólicas. Todos agiam “normalmente” como se estivéssemos vivendo em comunidade mesmo. E quando o assunto era a enchente, o que falavam é que agora é começar de novo, trabalhar para comprar as coisas mais uma vez… Tantas lições de vida!
No domingo de manhã foi o fechamento do abrigo… Confesso que fiquei até um pouco triste, estava completamente apaixonada por cada uma daquelas pessoas lindas e batalhadoras que conheci. Queria mais um pouco da força deles. Às 11h30 saí de lá, almocei e fui pra casa de um dos ex-abrigados pra ajudar na limpeza… Gente-do-céu, que pecado… Que tristeza!!! Perderam TUDO! Eles colocaram as coisas no segundo andar da casa do vizinho, mas a água chegou até a metade do segundo andar…
Mas conseguimos – eu, minha amiga e meu parceiro de escotismo – limpar tudo o que sobrou – móveis, louças, roupas, o chão, as paredes… Já os eletros, geladeira, TV, fogão, máquina de lavar, tudo estava encharcado e acho que não tinha mais salvação. Eles deixaram secando no sol, torcendo pra dar certo, mas eu já tenho experiência com isso e acho que só o que podia ter jeito era a máquina de lavar mesmo (máquinas de lavar têm 7 vidas).
Ainda consegui ter uma discussão idiota com o namorado. Ambos em abrigos, ambos estressados, uma bomba-relógio mesmo. Cheguei em casa as 20h de domingo. Muito, mas muito cansada mesmo, física e existencialmente, dor nas pernas, dor nas costas, dor nos braços, dor de cabeça, triste, #foreveralone, chateada, mas tentando pensar q meu estado de espírito era só resultado do stress mesmo.
A vida volta ao normal. E na segunda todos já estavam trabalhando novamente. E eu penso o que seria dessas pessoas, de todas essas pessoas, se não fossem os voluntários. E esse amor louco que temos pela humanidade, e essa vontade gigante de fazer tudo o que está ao nosso alcance para trazer um pouco mais de conforto às pessoas.
Já me acusaram de buscar confete quando conto sobre essas coisas. De querer troféu. Mas foda-se. Eu falo mesmo, sempre, pra todo mundo. Que trabalhei aqui, ali, que fiz isso, que fiz aquilo. Porque muita gente quer ajudar, gostaria de ajudar, mas não sabe nem por onde começar. Não sabe como fazer. E eu procuro mesmo recrutar mais gente, o tempo todo. Como a minha amiga que foi comigo na sexta e acabou ficando até domingo à noite. Se eu não estivesse falando sobre isso no Facebook, ela não saberia, e não me pediria para ajudar também. Acho bonito essa coisa judaica de ajudar anonimamente, mas não serve pra mim. Quero que as pessoas saibam o que os outros estão passando, que saibam que eu trabalhei muito – e isso significa que haveria trabalho para você também, se quisesse ajudar.