Feminino e feminismo

Muitas vezes, ouvimos alguém dizer que Fulana é feminina, ao passo que Ciclana é masculinizada. O que significa ser feminina e o que significa, aos moldes tradicionais e locais (micro-cultura), ser masculinizada? Qual seria o arquétipo de uma mulher feminina? Ser feminina teria maior relação com o vestir, o falar, o portar-se em sociedade ou o binômio pensamento/atitude? Por outro lado, qual seria o arquétipo de uma mulher masculinizada? Observem que não falamos de uma mulher masculina, mas masculinizada, em que o sufixo –(a)d(a), o mesmo contido em civilizado, moralizado, naturalizado, artificializado, e outras palavras, confere a ideia do processo: aquele que passou de ‘x’ a ‘y’. Isso significa que, verbalmente, atrelamos o natural ao cultural. Ser mulher é ser, inerentemente, um sujeito que corresponda ao ideal de feminino. Se o ideal não for representado, isso quer dizer que houve um deslocamento, um processo que tornou ‘x’ em ‘y’, ou seja, o feminino em masculino. A ideia do processo já indica a anti-naturalidade do estado. Logo, ser uma mulher masculinizada é ser anti-natural. A mulher masculinizada seria, então, uma deturpação do estado feminino, uma espécie de wannabe do arquétipo masculino.

Para entender essa lógica que aponta mulher como feminino e homem como masculino, em caixas bem separadas, devemos pensar quais seriam as características que definem, tradicionalmente, o feminino; e, quais são as características que dão conta do masculino.

Gender Confusion. Imagem de Andy Carvin, no Flickr, alguns direitos reservados

O feminino, encarnado pela mulher, foi, tradicionalmente, entendido como o outro, o segundo sexo, aquele que está às margens da vida política, das finanças, das decisões ditas “importantes” para o bem-estar social, como já apontara Simone de Beauvoir, em O segundo sexo. Ao passo em que o masculino foi, historicamente, interpretado como o sujeito universal, isto é, agente político e vetor social por excelência. Nesse modelo, o homem ocupa o espaço de ser social e a mulher o de agregado (cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988).

Dentre as principais características que estruturam o feminino tradicional estão dependência emocional e social-financeira. A mulher é educada para assessorar, para servir ao homem. Portanto, sua identidade está, tradicionalmente, atrelada a desse sujeito. Isso explica nossa cultura de classificar mulheres solteiras ou divorciadas como “mulheres de segunda”. Aos homens estaria reservada a tarefa de promover, ser empreendedor, desbravador. Sua identidade social é autônoma. Pode-se ser um “homem de família” ou, simplesmente, um espírito libertário e filosófico, um bon vivant. Ele não deve ser apenas um ente autônomo, mas desenvolver uma atitude doutrinadora, de liderança, por isso o papel de “intelectual tradicional” (cf. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1979) sempre caiu muito bem aos homens, mas algo desconfortável às mulheres. A perspectiva de uma mulher refletindo criticamente acerca dos valores de sua sociedade e mais, possuindo independência intelectual, nem sempre foi uma situação que os tradicionalistas aceitaram de bom grado.

Desse modo, temos caixas muito bem separadas, em que algo é de caráter estritamente masculino e algo é estritamente feminino. Isso não seria tão grave se “estritamente” não significasse, também, “inerentemente”. É como se a sociedade dissesse: “Se você quiser ser uma mulher, terá de corresponder à caixinha x.” Se não fizer isso, você é uma mulher masculinizada. O mesmo se aplica aos homens: “Se você quiser ser um homem, vá à caixinha y!” Se não fizer isso, você será um afeminado. Para os homens que não acessam bem as regras da caixinha y, há, ainda, o peso de carregar a alcunha do significante “feminino”. Ensinaram-nos que tudo que é “feminino”, logo relacionado às mulheres, é degradante e inferior. Por isso, podemos ser “todos”, “muitos”, etc. Mas, se houver um único homem no recinto, este se sentirá ofendido em ser tomado como “todas”, “muitas”, etc.

Isso ocorre, porque, aos moldes tradicionais, o ente feminino é entendido como fraco física e emocionalmente (“o sexo frágil”), covarde, medroso e instável. Não é trivial ouvirmos falas do tipo: _Você corre como uma mulher! / _Você pensa como mulher! / “You change your mind / like a girl changes clothes” (tradução nossa: Você muda de ideia / como uma garota troca de roupa), trecho da música Hot N’ Cold (intérprete: Katy Perry).

Mas o feminino também está relacionado ao famigerado “instinto materno”, que joga a responsabilidade dos filhos sobre as mulheres, sempre mais e mais. É atribuído ao feminino condutas, que contribuem para restringir seu empoderamento público, tais como a castidade, a resignação doutrinária e a “culpa” pelo cuidar, seja do parceiro, seja dos filhos. A mulher que abandona o lar é, aos olhos da sociedade, uma desnaturada. Novamente, as palavras falam por si, “desnaturada” remete àquela que não seguiu o chamado da Mãe Natureza. Já os homens que abandonaram sua família poderiam ser chamados de canalhas ou egoístas. Não seriam, tradicionalmente, “desnaturados”.

Quanto ao comportamento linguístico, George Lakoff, em Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind, discorre sobre as estratégias típicas do falar feminino. As mulheres não costumam afirmar e buscam construir um discurso cooperativo. Preocupam-se mais em modular sua fala a fim de buscar um meio-termo, visando, com isso, não ferir a face de seu interlocutor. Quando uma mulher discorre de maneira mais assertiva, é comum tomarmos essa atitude linguística como ataque pessoal, classificando-a como sinalizadora de grosseria propositada. Isso ocorre porque, atrelados ao senso comum, julgamos “anti-natural” que uma mulher se posicione de maneira clara, objetiva e, sobretudo, assertiva.

Tudo que vimos até então são algumas dentre muitas imagens que nos são passadas, diariamente, sobre o arquétipo de feminino. Observemos que todas elas convergem sob o signo “docilidade”, que é o atributo de quem é dócil e não o de quem é doce, no sentido de meiga. Uma mulher pode ser sensível à arte, à literatura, etc. Pode sentir grande empatia por outros seres humanos, mas se ela não for dócil, então será, automaticamente, uma mulher masculinizada. No fundo, o resumée da caixinha x (tutorial de como ser feminina) é não promover atrito, servir e resignar-se. Ser feminina, aos moldes tradicionais, é jamais reclamar seus direitos, cumprir seus deveres de maneira abnegada (assessorar, jamais demandar!) e, se possível, não competir com o masculino, em qualquer esfera pública.

Por isso, mulheres, sugiro que troquemos “feminina” por “feminista”! Mulheres feministas não são anti-femininas, ao contrário, estamos dispostas a reavaliar os significados do “feminino” tradicional, de modo a incorporar aqueles que correspondam ao nosso ideário de sociedade igualitária, lembrando-nos sempre que igualdade não deveria ser entendida como antítese de diferença, mas sim como antítese de desigualdade.

E, homens, por favor, não tenham medo da palavra “feminino”! Como discorremos ao longo desse texto, a maior parte dos significados que essa palavra emblema são construções culturais e não questões naturais. Não aceitem estar em sua caixinha limitada de masculinidade. Trabalhem para ampliar suas capacidades. E, caso julguem justas nossas propostas, assumam, sem medo das palavras, o feminismo nosso de cada dia!

Autora

Talita Rodrigues é linguista apaixonada/inebriada/devotada. Viciada em literaturas e debates filosóficos/antropológicos/sociológicos. Aprecia acompanhar e opinar em debates da esfera política. E, claro, feminista em processo eterno de aprendizagem!