O ensino da História, a memória social e o silêncio gritante da mulher

A mulher vem constando nas páginas dos livros de história como figurante, isso quando ela consta! Quando pensamos em mulheres na historia os papéis são bem definidos. Ela é a prostituta do meretrício, ou a esposa virtuosa. São os dois espaços que ela esta apta a desempenhar.

Alguns dias atrás, revisei o caderno da disciplina de história da filha de um amigo, fui auxiliar a menina em algumas dificuldades e quis ver o que ela estava aprendendo. Pois, apesar de toda a sistematização e normativas dos currículos escolares, na prática o conteúdo pode ser bem diferente. Ela estava estudando Brasil na Primeira Republica e, ao analisar os exercícios e os textos sugeridos, vi uma história oficial, tradicional, branca, masculina e heterossexual exposta naquele caderno. Não havia nenhuma citação sobre os movimentos sociais, sobre as discussões acerca dos direitos humanos, absolutamente nada. Nenhuma mulher sequer citada como a esposa ou amante de algum governante.

Eu me sinto desafiada perante essas situações. Desafiada a ensinar, desafiada a compartilhar conhecimentos e auxiliar meus alunos para que descubram o fascínio de refletir sobre a sua própria história, levando em consideração as características de sua identidade, sua realidade.

Pensar no ensino da disciplina de história, acaba sendo  concebê-la como um recorte, como pratica em constante transformação, em permanente releitura, um processo. O currículo de história, independente do currículo da escola pública ou particular, representa uma série de escolhas e olhares que definiram o que é importante a ponto de ser esquematizado e estruturado para o ensino em sala de aula.  Por que as mulheres não constam nos currículos das disciplinas de história? Porque as mesmas não são importantes, talvez fosse a resposta mais rápida.

O ensino da história é reflexo da estrutura da nossa sociedade, ou seja, ele é patriarcal também. Nós acabamos enumerando uma série de acontecimentos “feitos por homens” que foram expoentes no seu tempo. A mulher, quando aparece, nos currículos de história está atrás. Atrás da grande revolução, atrás do grande homem, atrás da informação. Nosso olhar é seletivo, conservador, nós mulheres somos as marginalizadas da história.

As mulheres, os negros, os movimentos populares, as diversas matizes culturais formam um todo que está a margem da história. Podemos citar como exemplo, as dificuldades que o ensino da historia afro-brasileira passa no Brasil. Apesar da regulamentação sobre o mesmo, os professores tem dificuldade em abordar o tema com propriedade. Os olhares conservadores, retrógrados e preconceituosos da sociedade levantam sua voz para dizer que o ensino da historia afro-brasileira doutrina os alunos a seguirem a religiosidade de matiz africana e, isso não deve ocorrer. Porém, os mesmos grupos fazem questão de um ensino religioso nas escolas de viés cristão ocidental. Dois pesos, duas medidas.

Maria Felipa de Oliveira (1822) - Em Itaparica organizou a resistência e impediu que a marinha Portuguesa influísse decisivamente para o lado dos dominadores nas guerras da Independência,. Comandou 40m Mulheres que queimaram 42 barcos da esquadra, permitindo ao povo de Salvador a supremacia nos embates.

Alguns anos atrás em um curso sobre Patrimônio Cultural e Memória Social, participei de um debate sobre a depredação do Patrimônio Publico de Porto Alegre e o desinteresse das pessoas na sua própria história, partindo da concepção que a história da sociedade esta representada em seu patrimônio histórico e cultural. Ao refletirmos o que levava as pessoas a descuidarem tanto do seu patrimônio, chegamos justamente a questão da importância do “seu”, do pertencimento, do enxergar-se fazendo parte daquela história. Nossos alunos estariam se sentindo parte da história? Nós nos sentimentos parte da história? Nossas meninas ao passarem mais de 10 anos nos bancos escolares, se veem representadas na história que lecionamos? Nós mostramos para essas meninas sua importância no processo histórico, na sociedade? Elas estão representadas nos nossos patrimônios, nos museus, nos bustos de bronzes nas praças? Onde está a mulher? Onde esta a mulher negra, a mulher indígena, a branca? Onde elas estão? Elas estão silenciadas em uma estrutura patriarcal que as coloca a margem da história.

Quando leio os novos livros de história, revisados e contemporâneos, normalmente encontro a mulher citada. Normalmente esta assim: Segue o livro todo narrando a historia “oficial” e, na margem do livro, em algum quadro, lá esta constando alguma informação sobre mulheres que foram importantes no período. A citação está lá sim, mas não como parte da história, mas em separado, algo como um favor ou cumprimento de uma norma. Não porque somos reconhecidas como parte da história, como sujeito da história, como protagonista da história. O enfoque deve mudar! A mulher deve ser focada como sujeito.

Para tanto, queridas companheiras, nós devemos produzir. Esta na hora da mulher escrever a sua história, já passou da hora!

Muitas ainda não se sentem parte da história, não somos identificadas como agentes da história, não se percebe naquele passado ora tão distante raízes do nosso hoje, indicadores do nosso amanhã.  Não percebemos nossas lutas, nossas vitórias, nosso sangue e suor derramado, onde está a luta da mulher? Chega desse silencio nas páginas dos livros. Nossas meninas precisam conhecer a sua história e fazer a sua história. Nós devemos produzir! A mulher deve escrever a sua história! Nós, professoras, devemos traçar uma árdua batalha, uma luta diária para que a mulher esteja presente nos currículos, não como uma citação a parte, mas como personagem central, como protagonista, como sujeito de sua história.

Chega de ensinar independência do Brasil como um ato nobre de Dom Pedro sobre um pomposo cavalo branco, seguido de homens bravos e fortes. ONDE NÓS ESTAMOS? Onde está a mulher? Nós mulheres de hoje, devemos lutar e resgatar as bravas mulheres de ontem e, apresentá-las à essa geração de meninas que esta ai.  Os gritos da fogueira não serão silenciados! Precisamos ouvir a voz e dar voz a estas mulheres.

Lembro do meu olhar engessado de alguns anos atrás. Me recordo de fazer uma pesquisa no Museu de Comunicação Social de Porto Alegre e, enquanto analisava jornais passava batido por noticias de homens que lavaram a honra espancando suas mulheres, mulheres assassinadas de moral duvidosa, mulheres “baderneiras” que gritavam contra o nobre governo. Naquela época eu não ouvi esses gritos… a mulher estava lá gritando, lutando, mas eu não ouvi. Hoje eu quero ouvir.

Nós, professoras e professores, devemos mudar nosso olhar. Devemos mostrar aos alunos o quanto passado e presente estão próximos, instigar a reflexão sobre os rompimentos e continuísmos da história, mostrar a história viva, pulsante e atual, mostrar esse grito.

Que nossas meninas conheçam a sua história, vamos nos permitir conhecer. Um brinde a história das bravas mulheres! Um brinde aos marginalizados da história! Um brinde para nossa desacomodação e mudança de postura e olhar! Vamos brindar e produzir!