Eu lembro até hoje o dia em que fiquei menstruada pela primeira vez.. Lembro que tinha cerca de 10 anos, ao ir ao banheiro vi minha calcinha marcada com algo que parecia sangue. Lembro de ficar pretificada, aquela sensação de medo, pavor, vergonha ainda esta presente na minha memória. Eu não tinha a menor idéia do que estava acontecendo com o meu corpo, nunca havia sido informada sobre o que iria acontecer comigo, sobre as mudanças naturais no corpo de uma menina, eu simplesmente sabia que meu corpo mudava, eu percebia, mas não tinha real noção do que estava acontecendo. Minha família jamais conversou comigo sobre essas mudanças, qualquer assunto referente ao corpo feminido, a sexualidade era um tabu. Eu me lembro de estar trancada no banheiro, sozinha, com medo, sem ter com quem conversar, chorando encostada na parede, me sentindo culpada.
Isso aconteceu comigo a cerca de 18 anos atrás, acho que o carinho especial que eu tenho para conversar com meninas passe um pouco por essa experiencia, o medo da mudança, o terror da surpresa, a vergonha perante o corpo feminino em desenvolvimento, eu não quero ver outras meninas passando pelo que a Ana Rita menina passou. Muito infelizmente hoje ainda vejo.
Hoje tive oportunidade de conversar com uma acadêmica do curso de serviço social da UFRGS, ela me relatou uma cena muito triste. Uma menina chegou na sala de aula, muito constrangida, tremendo de medo, a menina foi retirada da sala e encaminhada para conversar com a assistente social. Ao questionar a menina sobre o que estava acontecendo, a mesma confessa: eu fiz algo horrivel! Ao ser acolhida, acalmada, a menina segue relatando que fez algo terrivel com seu corpo, ela diz que nao sabe o que é, mas com certeza fez algo errado, pois ela estava com a vagina machucada e a mae dela iria bater nela. Depois de muito conversar, percebe-se que na verdade a menina ficou menstruada pela primeira vez. Ela tocou na sua vagina, ela percebeu essa mudança no seu corpo, ela tão pequena se sentiu culpada. Culpada pela mudança no seu corpo, culpada por se tocar, culpada por ser uma menina, culpada perante a família, culpada, culpada. Dezoito anos se passaram desde a minha primeira menstruação, lembro que depois que minha mãe descobriu, ela veio me perguntar se eu não tinha deixado alguem na escola mexer entre minhas pernas, eu me senti envergonhada e culpada, eu odiei aquele momento, eu odiei meu corpo.
Essa menina que citei neste texto esta sendo acolhida, orientada, uma equipe esta conversando com ela e com os responsáveis, eu realmente espero que a culpa que esta menina sentiu, que esses conceitos engessados que criaram nessa familia essa visão do feminino sejam trabalhados e que estas mulheres possam aos poucos passar a enxergar seus corpos, sem culpa, sem medo.
No Brasil Colonia era uma idéia comum de que o útero era a mãe do corpo da mulher, e que quando uma mulher “sangrava” ela estava purgando o seu mal, aquele momento era a prova viva de sua culpa, de seu pecado, era seu castigo, de sua relação intima com o demônio, ela estava doente. Gostaria poder dizer que esta idéia ficou no nosso passado, mas infelizmente não posso, a cada dia vemos provas das pejorativas concepçoes que ainda recaem sobre o corpo da mulher.
Quero dizer para essa menina e para todas as meninas que seu corpo não é imperfeito, não é vergonhoso, não é de outrém, quero dizer que seu corpo é seu, ele não é sua vergonha, mas seu bem, é seu, você pode toca-lo. Assim como essa menina, assim como eu quando fui uma menina, muitas mulheres envergonham-se de seu corpo, muitas mulheres nunca tocaram seu corpo com intimidade, conheço mulheres que nao utilizam absorvente interno por nojo e vergonha de tocar sua vagina. A mentalidade de inferiorização ainda tem raizes firmes.
Quero falar, quero gritar, quero mostrar, nosso corpo não é sujo, não é inferior, nosso corpo é um corpo de mulher e deve ser livre como tal.
Menina, não há nada de errado com você!
O corpo feminino ainda é um mistério.
*Imagem do destaque: Tristesa. Foto de Llorenç Esteve no Flickr.