Tenho dois filhos que nasceram de parto vaginal hospitalar no Brasil. Sou privilegiada. Num país em que 44% dos partos são cesárias (número que inclui as percentagens das redes pública e privada) chegando ao absurdo número de 85% a 90% em alguns hospitais privados, quando o limite estabelecido pela OMS é de 15%, eu tenho bastante consciência do meu privilégio. A simples existência de uma estatística absurda dessas já é de uma violência gigantesca.
A cesária quando bem indicada pode sim salvar as vidas de mãe e bebê, mas é um procedimento que deve ser feito como último recurso. A violência contra mulheres durante o período gestacional, parto e puerpério não para aí. Na verdade essa é apenas a ponta de um grande icebergue. A violência contra mulheres grávidas é institucionalizada e por vezes faz parte dos protocolos médicos de atendimento. E “quanto mais jovem, mais escura e mais pobre a mulher, maior a violência no parto.”
Esse post faz parte da blogagem coletiva – Teste da Violência Obstétrica, organizada pelos blogs: Parto no Brasil, Mamíferas, Cientista que virou mãe e o apoio do grupo Parto do Princípio.
A minha história de parto também foi de algum modo uma história de violência. A violência no meu caso veio na tentativa velada de me fazer mudar de ideia e aceitar uma cesariana, ou de uma episiotomia, na hora da expulsão do bebê. Sofri episiotomia nos dois partos. No segundo parto por uma má vontade extrema do corpo de enfermeiras e dos procedimentos de entrada na sala de parto não tive tempo de tomar nenhuma analgesia. O bebê por pouco não nasceu no corredor que dava acesso à sala de parto, que é na verdade um centro cirúrgico.
Toda violência do sistema de saúde no que tange os procedimentos do parto começa desde ai. As maternidades tem uma sala de cirurgia com uma mesa de operações minúscula e estreita onde é impossível parir com conforto, pois é feita pensando na mulher submissa e inerte para passar por um processo cirúrgico, e não para protagonizar o seu próprio parto. Pari pela primeira vez sentada numa mesa dessas tentando me equilibrar, mas com analgesia. Da segunda vez pari deitada sem analgesia, e com uma dor lancinante que depois soube ser a episiotomia feita de novo no momento da expulsão, a cru. A analgesia veio só depois do parto para fazer a sutura.
Mesmo tendo essa experiencia tão precária de parto me senti feliz por ter sido protagonista da minha escolha e de ter tido a felicidade de tocar meus bebês logo após o nascimento e amamentar a minha caçula ainda na sala de parto. Fui muito privilegiada das duas vezes que pari. Meu marido esteve comigo durante todo trabalho de parto nos dois partos e presente no nascimento do nosso primeiro filho, no segundo parto ele não teve tempo de entrar na sala antes do nascimento. Na maternidade, nas duas vezes, meus filhos foram os únicos a nascerem em partos vaginais, eu cheguei a ser apontada na maternidade de tão estranha a minha conduta para os padrões de maternidades privadas na minha cidade. Fiquei feliz por que mesmo não sendo uma experiencia em que eu estivesse informada de todos os procedimentos eu tive o apoio e minha obstetra que me deu autonomia de me mexer de andar pelo quarto para otimizar o trabalho de parto. Muitas de minhas amigas não tiveram sequer essa chance. A maioria delas são da mesma classe social que eu, poucas foram as que tiveram filhos por partos vaginais, na verdade dá para contar nos dedos de uma mão as que tiveram. Outras diante da minha experiencia chegaram a exigir uma cesária para não passar por todo o sofrimento.
Apesar de não ter tido a experiencia de parir num hospital público posso fazer uma ideia, que também não é bom. Lendo o artigo: Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias, vi inclusive algumas semelhanças com os maus-tratos que sofri na minha experiência com paciente de um hospital privado. Os maus tratos que sofri permearam toda minha gravidez, mas ficaram bem mais visíveis na hora do meu atendimento na maternidade. A médica de plantão que me atendeu e me fez o exame do toque mais dolorido de toda minha vida, nunca antes ou depois dessa vez tive uma experiencia dolorida com esse tipo de exame. Nos dois hospitais em que fui atendida as enfermeiras em ocasiões diferentes foram ríspidas ou jocosas ou minimizaram o meu sofrimento. E foi, sem dúvida alguma, no meu segundo parto onde vivi muito mais episódios de descaso e de má vontade no meu atendimento ou no cuidado com o bebê. Nesse segundo parto uma enfermeira mandou que eu me acalmasse e parasse de gritar pois nervosismo não adiantava… Eenquanto eu gritava de dor pois estava deitada numa maca sentindo contrações fortíssimas, com a bolsa já rota sentindo o bebê coroando, enquanto e ela parou em frente a porta do centro cirúrgico tentando calmamente abrir a porta de acesso que era trancada com uma senha eletrônica. Ou quando no dia do meu primeiro parto, depois de ser internada por causa de um pico hipertensivo a enfermeira me trouxe o kit de banho e me mandou pro banheiro fazer a higiene antes que ela fizesse a tricotomia e saiu indignada quando disse que eu não ia fazer uma cesária. Essa mesma enfermeira não queria que eu tomasse banho ou ficasse embaixo d’água no chuveiro, para aliviar minha dor. Imagino que estamos todas à mercê de todo tipo de violência seja no hospital público ou privado.
Essa violência que é legitimada pela desinformação e pela postura passiva que somos levadas a ter frente a classe médica que são os detentores da informação e que a cerceiam nos privando assim de exigir nosso direito de sermos bem tratadas e escutadas nos nossos desejos e escolhas na hora do parto. Como aponta a pesquisa da cientista que virou mãe: a negra, pobre e jovem é a que mais sofre violência no parto.
Eu falo de um lugar cheio de privilégio, sou da classe média tenho formação universitária tive um pré-natal com a médica que eu escolhi. Que se não me deu todas as informações que eu pedi eu sempre pude ir na internet e buscar a informação de outra forma. E quem não tem isso, esse acesso a informação? Nas minhas consultas do pré-natal pouco me foi revelado sobre como seria o parto, ou como eu poderia me preparar para ele, apesar de eu ter perguntado. Sempre tive a impressão, e hoje tenho certeza, era intencional que assim fosse. Recebi uma série de requisitos para me adequar ao parto vaginal: não ganhar muito peso, fazer exercícios físicos, e uma dieta bem controlada para não ter picos hipertensivos ou alta na taxa de glicose. E se eu não seguisse tudo bem direitinho, todas as instruções e recomendações, a qualquer momento a opção por um parto normal podia ser perdida. Qualquer motivo, por menor que fosse, seria a desculpa perfeita para eu perder a chance de ter um parto vaginal. O meu parto vaginal, me parece, nunca foi um direito meu ele foi mais um prêmio que eu ganhei pois fiz muito esforço e fui muito persistente na minha intenção.

Infelizmente para mim, muito de tudo que escrevo aqui agora, eu descobri vivendo esses dois partos. Depois de parir dois filhos em hospitais particulares eu descobri que sempre que alguém parir num hospital e o fizer por um plano de saúde, vai sofrer episiotomia por que @ obstetra tem que justificar, perante o plano, sua participação no parto, caso contrário, el@ não receberá o pagamento. Descobri que se o parto acontecer em qualquer outra dependência do hospital que não no centro cirúrgico, o hospital não recebe o pagamento pela procedimento. Depois de saber dessas informações ficou claro para mim que dentro da minha escolha eu não tinha opção e isso é uma horrível violência. O sistema de saúde no Brasil é cruel e desconsidera horrivelmente a mulher como paciente e protagonista do parto.
E ai eu comecei a me perguntar por que? Por que tem que ser assim? Na mesma época do meu parto no Brasil, minha irmã, que mora na França, pariu um bebê que estava com apresentação pélvica ou seja, sentado. E ainda assim ela teve um parto vaginal, sem episiotomia. Então qual o problema com os processos e protocolos de atendimento à gestante e parturiente no Brasil? Para terminar eu vou colocar um vídeo que assisti esses dia na internet. É o vídeo de um parto domiciliar feito em São Paulo. Eu fiquei super emocionada com esse vídeo. O parto dessa mulher foi uma experiencia maravilhosa para ela, para o marido, para o bebê.
Eu assisti esse vídeo e fiquei pensando e me indagando, por que todo mundo não pode ter acesso a esse modelo? Não acho que quem não queira deva parir em casa, mas os confortos de ter acesso à uma banheira de água morna, uma experiencia sensorial de musica e um ambiente iluminado suavemente, a presença d@ parceir@ ou o cuidado de uma doula…Por que não para todas? Por que só quem tem uma condição financeira privilegiada tem direito a ser protagonista, e escolher a maneira pela qual o seu bebê vai nascer? Por que alguns são mais bem tratados que outros, num dos momentos mais importante da vida que é o nascimento?