Não existe espaço seguro!

Texto de Elisa Gargiulo. Lido ao microfone, após o show do Dominatrix, no festival Queers & Queens, em 04 de março de 2012. 

No dia de hoje decidi que nunca mais usarei a expressão ‘espaço seguro’. Hoje é oficialmente o dia, em que eu defino para mim mesma e quem quiser ouvir, que a responsabilidade de evitar a violência é das próprias pessoas. Seja essa violência de quem quer que for, contra quem quer que for. Homens, mulheres, bissexuais, heterossexuais, homossexuais, pessoas trans e quem mais que não se enquadre em nada do que acabei de citar.

É hoje o velório e funeral de uma ideia antiga, usada por mim até ontem. A ideia de que estando dentro de quatro paredes e querendo muito que esse ambiente seja seguro, automaticamente ele se tornaria seguro. E é a partir de hoje que eu transfiro a responsabilidade de evitar violência dos tijolos e concreto que compõem essas paredes para mim mesma. Convido assim, todos e todas que um dia quiseram falar sobre ‘espaço seguro’ a olhar para essas paredes e perceber que é impossível falar em “espaço seguro”, proponho falar daqui para frente de atitudes seguras, de um olhar sempre alerta. Mais do que a impossibilidade de se determinar geograficamente o que é seguro ou não, também quero falar sobre a perversão escondida atrás dessa ideia, uma perversão patriarcal que, desavisadas, replicamos nas nossas práticas feministas.

Foto de Sigfrid Lundberg no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Quando eu era pequena, me foi dito pelas pessoas, antes que me explicassem o que era violência, que minha casa era um lugar seguro. Antes que me ensinassem o que era agressão física, me disseram que pessoas da minha família eram incapazes de me fazer mal. Antes que me ensinassem a dizer “não”, me disseram que a escola que estudava era segura, que lá nada iria me acontecer.

Por muito tempo não identifiquei atos de violência e obscenidade contra mim, porque esses atos aconteciam em espaços que me falaram serem seguros. Eu pensava: “se me falaram que aqui é seguro, então isso que acabou de acontecer comigo não é violência, é ruim, mas não é violência”. E eu não dizia para ninguém. Porque me ensinaram que os muros e tijolos sabiam mais do que eu sobre onde era seguro.

Quando eu era menina, eu era UMA MENINA, uma criança que sofria agressão, mas eu mesma não identificava como agressão se viesse de alguém ‘seguro’, de alguém que a sociedade dizia que não iria me fazer mal. Pior. Além de não ter sido ensinada sobre o que era violência, quando eu era agredida, automaticamente me perguntavam se eu havia provocado. Ou seja, antes de alguém me agredir, eu sentia que eu tinha o mal dentro de mim e que isso ia provocar a ira de alguém. Essa é a história das mulheres.

Foto de João Ornelas, no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Quando me tornei feminista, por necessidade de sobrevivência, comecei a pensar em como a violência tinha tomado conta da minha vida. Por eu simplesmente não ter sido ensinada desde cedo sobre a definição do que seria agressão e nem ter sido ensinada a dizer ‘não’ quando identifico o início de um ato violento. A percepção da violência era cadenciada. Como quando eu toco minha guitarra e a bateria me segue pra criar um som. Se eu contasse o que se passava comigo algo de ruim iria acontecer em paralelo automaticamente. Mas não tinha som, só silêncio.

Hoje, por exemplo, quando sinto que estou em uma situação de violência me retiro, me afasto. Mas até pouquíssimo tempo atrás, pessoas fisicamente ameaçadoras podiam chegar perigosamente perto de mim. Isso pode acontecer com qualquer tipo de pessoa. Rica, pobre, branca, negra, homem, mulher etc. A ideia de que apenas um grupo demográfico específico de mulheres ou homens apanha é errada, ignorante, cega, e serve ao sexismo vigente. Mais uma vez, a ideia de “espaço seguro” em seu uso perverso está nas entrelinhas desse pensamento e a gente não se dá conta.

A violência pode acontecer com qualquer pessoa. E ao longo das minhas práticas feministas, em oficinas, congressos, seminários, protestos, grupos de trabalho, etc. Percebi que determinadas mulheres tinham mais voz quando falavam sobre suas experiências de violência. Mulheres lésbicas, por exemplo, quando traziam seus relatos recebiam menos atenção. Afinal elas estavam em um relacionamento que as ouvintes diziam ser “mais seguro”, um “espaço seguro” pra mulheres se relacionarem sem sofrer violência. Mentira.

Até ontem, como militante e sobrevivente em busca de ajuda, tentei criar ‘espaços seguros’ em oficinas e debates, em abertura de eventos e festivais feministas, em cima do palco. Tudo isso que eu fiz até ontem dentro desse tema é, na minha nova percepção de militante e sobrevivente, inútil. O único jeito de se evitar violência é através da AÇÃO individual, que pode partir da conscientização de um grupo que debate e se mantém alerta, unido contra qualquer coisa que possa parecer um ato de violência.

Determinar que algum quarto, sala, galpão, palco, camarim, corredor é um “espaço seguro” é passar para esses tijolos e blocos de concreto a responsabilidade NOSSA de olharmos ao nosso redor e repararmos em como as pessoas se relacionam. Alguém pode dizer: “mas é óbvio que quando falamos em espaço seguro falamos da responsabilidade das pessoas em criar esse espaço”. Não é óbvio e é nocivo.

Vamos mudar nossa linguagem. Palavras criam realidade. Não existe espaço seguro.

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Elisa Gargiulo é lésbica, militante feminista, organizadora do festival Ladyfest Brasil e vocalista e guitarrista da banda feminista da hardcore Dominatrix, que completa 17 anos de existência esse ano.