Direito e Gênero: entre teoria e realidade

Em teoria, juridicamente falando, a estrutura social patriarcal estaria superada e garantida a igualdade entre homens e mulheres, igualdade de direitos e deveres em todos os âmbitos. São ambos plenos em sua dignidade e no exercício dos direitos a ela inerentes. Assim o art. 5º  que diz que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Assim também o art. 226, ao tratar da família, que diz que “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…) § 5º – Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. (…) § 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

Lady Justice - The Statue Of Thomas Andrews Hendricks. Foto de istorija (Darius Norvilas) no Flickr em CC, alguns direitos reservados

Em teoria, o debate feminista, como muitos pretendem defender, seria desnecessário, uma vez garantida a igualdade. Em teoria, a Lei Maria da Penha protege as mulheres vítimas de violência doméstica. Em teoria, o Código Penal disciplina de forma isonômica e proporcional condutas que violam bens jurídicos considerados fundamentais pela sociedade. Bens jurídicos, direitos, interesses e não valores morais.

Em teoria. Apenas em teoria. Ou melhor, apenas no discurso.

Há uma grande distância entre o discurso da teoria e a realidade. Há mesmo uma grande distância entre o discurso da teoria para o próprio conteúdo da teoria, ainda insuficiente.

A realidade é que, ainda que considerados os inúmeros avanços sociais e jurídicos,  vivemos em uma sociedade primordialmente fundada no patriarcado e alimentada pelo senso comum da cultura patriarcal. E a própria teoria (jurídica e legislativa) é, em parte, também resultado dessa cultura.

É certo que a expressão “patriarcado”, muito usada no feminismo, causa arrepios ou irritações por aí. Certo também que a evolução e os avanços sociais tem nos colocado em condições muito melhores que as do passado. Nenhuma das  observações, porém, é motivo suficiente para deixar de lado a sua análise. Especialmente quando se percebe que o patriarcado nos deixou um critério que permeia nosso modo de viver, nosso modo de pensar e até nosso modo de legislar. A cultura ou senso comum patriarcal criou uma série de dicotomias, baseada na distinção dos gêneros masculino e feminino. Dicotomias que indicam pares de qualidades ou características: público/privado, produtor/reprodutor, razão/emoção, sujeito/objeto e associou as primeiras dos pares ao gênero masculino e as segundas ao feminino, ao mesmo tempo em que as hierarquizou, qualificando as primeiras de modo superior às últimas.

Nesse modo de viver e pensar, reservou-se (e ainda é reservado) à mulher o espaço privado-reprodutor da vida. Na ordem social capitalista e patriarcal, cabe ao homem o espaço público e produtor, espaço em que a objetividade e a razão – nessa lógica considerados atributos próprios desse gênero – são fundamentais. Por ser mais emotiva – consideram -, mais capaz de sentimentos de abnegação e mais sensível, à mulher cabe o cuidado, a proteção e a condução do espaço doméstico e a função reprodutora.

Em razão desse modus estar tão enraizado em nossa cultura, a distância entre teoria jurídica e realidade e mesmo a distância entre o discurso da teoria e o conteúdo da teoria  são tão grandes. As dicotomias acima citadas funcionam como critérios e essencializam as características, condições e posições de cada gênero. Os reflexos se espalham por todos os âmbitos das relações sociais, mas esse texto faz referência apenas à sua influência no campo jurídico.

E por isso é necessário reconhecer que o direito (e o direito penal, meu objeto de estudo) tem gênero por também ser parte da sociedade patriarcal em que inserido. O paradigma de gênero e sua discussão, tão caros ao feminismo, ainda não foram devidamente inseridos na teoria jurídica. Acredita-se que a igualdade garantida na Constituição é reconhecimento suficiente da inexistência de discriminações de gênero e o debate assim e aí se estaciona, esquecendo que o Direito em sua teoria, em sua prática e  na constituição de seus órgãos e instituições é a repetição do mesmo modus, afinal é ele (o Direito) também um produto da cultura.

Como dito, meu objeto de estudo é o Direito Penal e, mais recentemente, a criminologia. Não quero entrar em pormenores, mas digamos que essa última procura entender os caminhos e razões da criminalização (da consideração do porquê uma conduta ser considerada crime e outra não e o porquê de algumas pessoas serem criminalizadas e outras não e daí por diante). Acontece que, efetivamente, o discurso criminológico e jurídico-penal não embarcou no paradigma de gênero e, ao assim proceder, permitiu que também nessa área fosse confirmado o pertencimento da mulher ao espaço privado-doméstico-reprodutor.

Em primeiro lugar, percebe-se que pouco ainda se conhece sobre a criminalidade feminina: que crimes praticam, em que condições, que mulheres são mais criminalizadas. A criminologia tem sido fundamental na avaliação, por exemplo, da seletividade do sistema penal que condena e encarcera a população pobre e negra do país (essa população pobre e masculina que não cumpre com sua função ou papel público-produtor, na lógica capitalista e patriarcal) , os mais vulneráveis e suscetíveis ao poder punitivo; ao mesmo tempo em que mostra que a prática de delitos das mais variadas espécies não escolhe raça ou classe social, mas as agências punitivas contribuem para a seleção de apenas alguns crimes de apenas alguns indivíduos.

A avaliação, no entanto, tem sido constantemente produzida de modo alheio ao recorte de gênero. Poucos são os autores (e falo mesmo em autores, em teoria, porque o debate ainda é bem ausente na prática dos juízos e tribunais) e os pesquisadores que procuram incluir esse recorte, buscando compreender quem é essa mulher criminalizada e por que ela é criminalizada. Pouco se percebe que, muitas das vezes, a dicotomia patriarcal é o próprio critério de avaliação judicial: essa mulher, que não cumpriu com seus deveres e papéis, que não assumiu corretamente seu papel de mãe e esposa, que não soube gerir um lar e delinquiu merece o cárcere ( independente de qual seja o crime praticado). Essa mulher, não corretamente disciplinada pelo controle informal social, agora o será pelo controle formal – e só o é por ter falhado em seu papel e por ter fugido ao controle do patriarcado.

Lady Justice - Foto de Vassilena no Flickr em CC, alguns direitos reservados

E assim a sala de audiência reproduz o cotidiano: a mulher condenada por não ser o feminino.

Em segundo lugar, o próprio texto legal constrói uma criminalidade de gênero que tem por base o controle da sexualidade feminina e/ou a manutenção dos papéis sociais a ela reservados. Nesse ponto, alguns avanços são dignos de nota, como a retirada da expressão “mulher honesta” para identificar a possível vítima de posse sexual mediante fraude. (Retirada, no entanto, apenas em 2005. Retirada, efetivamente, apenas do papel, mas ainda presente no imaginário e na interpretação de juízes e demais atores do direito). A realidade, no entanto, é a construção e manutenção de uma  “criminalidade de gênero” que ainda tem por conteúdo a imposição – social e moral – do papel de mãe, a ser representado no espaço privado-doméstico a ela reservado. E aqui basta o comentário de um único crime: ao criminalizar a mulher pelo aborto praticado, o direito penal consagra o controle do corpo feminino e do exercício de sua sexualidade, condenando-a (com e sem trocadilhos, com e sem ironias) ao papel de mãe. O corpo e a sexualidade femininos, assim quer o senso comum patriarcal e assim quer o direito penal, apenas tem uso e lugar para o cumprimento da função atribuída a essa mulher, nos pares de qualidades expostos anteriormente: a reprodução.

Não se reconhece o direito de escolha dessa mulher. Não se reconhece o direito sobre seu próprio corpo e o direito de exercício livre da sexualidade, fora das amarras morais do casamento e da função reprodutora.  A mulher que exerce qualquer desses direitos terá apenas duas escolhas: o cumprimento do papel que nunca escolheu ou o cumprimento da pena que nunca desejou.

E nesse ponto, assim como em todo o direito penal, como já mostrou a criminologia, uma seletividade se produz: a realidade mostra que as mulheres que abortam são das mais variadas idades, classes sociais, orientações religiosas. Na prática, no entanto, algumas são devidamente cuidadas e atendidas em clínicas particulares, onde realizam o aborto com segurança. Outras, sem dinheiro ou condições semelhantes, morrem, sofrem com as consequências de práticas abortivas irresponsáveis ou clandestinas ou são criminalizadas.

Por esses motivos, a introdução definitiva do recorte de gênero na análise jurídica se faz essencial. Só assim a dita distãnica entre teoria e realidade será descortinada e diminuída. Só assim se percebe o quanto o conteúdo dessa teoria nem mesmo é suficiente para garantir a igualdade nos moldes desejados pelo movimento feminista. Só assim para se perceber que, ainda, são negados direitos fundamentais a mulher, pela própria lei, pelo próprio direito.