Muitas vezes, quando falamos em liberdade sexual, sobretudo homossexual, e autonomia da mulher há quem diga que estamos caminhando rumo às cidades bíblicas conhecidas como Sodoma e Gomorra. Sobre isso, pergunto qual é o problema de nos ligarmos ideologicamente a elas? Falaremos neste post não sobre a narrativa bíblica, em que os anjos de Deus ficam a um triz de serem abusados pelos perversos sodomitas (poxa, se nem o todo poderoso Deus podia proteger seus enviados, a situação estava mesmo feia!), mas da versão cinematográfica.

No filme Sodoma e Gomorra (1962) encontramos uma adaptação bastante conhecida sobre tais citações bíblicas. Baseado nesta produção, questionamos qual é o grande problema de querer ser habitante de Sodoma e Gomorra? O que haveria de tão ofensivo em as pessoas poderem viver suas orientações sexuais sem qualquer julgamento e, sobretudo, por que seria tão terrível estar sob o domínio de uma mulher e não sob o de um homem, já que a condensação do poder não entrara em discussão?
No começo do filme, Lot, sobrinho de Abraão, segue com seu povo rumo à terra prometida e, no meio da estrada, topa com a escrava Ildich. Esta conta ao líder dos hebreus que em sua cidade não há pecado, pois tudo que der prazer será considerado bom. Aqui podemos questionar qual é o problema em desejar e buscar o prazer?
O hedonismo cirenaico, por exemplo, afirma que a felicidade seria um estado de maior prazer e de menor dor. Neste aspecto, buscar o prazer seria um dos caminhos que levariam à felicidade. Portanto, seria paradoxal propor uma relação de univocidade entre a busca pelo prazer e o sofrimento do sujeito. Tal perspectiva só seria possível pelo viés daquilo que se convencionou chamar de pecado. Para amparar tal proposta é que servem os dogmas religiosos, cujas bases não estão a priori disponíveis para o debate.
Por outro lado, haveria problemas se a abordagem fosse de um hedonismo não ético, ou seja, se o prazer provocasse prejuízo ao outro, direta ou indiretamente. Ou seja, a questão a ser pensada é ética e não propriamente sobre os malefícios do prazer sob o sujeito. No filme, retrata-se, de fato, uma cidade (Sodoma, segundo a lenda, ficaria nas proximidades do Mar Morto) cujos bens e comércios eram mantidos por uma ordem escravocrata, o que por si só seria uma prática não ética. Além disso, fala-se de trapaças nos sistemas comerciais, outra atividade não ética. Mas, incrivelmente, não são tais aspectos os mais ressaltados na ficção como as causas para o “extermínio” dos sodomitas por Jeová.
Pensando bem, é muito oportuno que o status quo não queira dar tanta importância ao que realmente torna a vivência insuportável, isto é, a escravização dos corpos ao sistema monetário e suas práticas abusivas, as quais, por sua vez, podemos traduzir em nosso sistema atual pelo nome de “juros”.

Mas, voltando aos aspectos éticos mais individuais, em que nossa ordem diferiria tanto da de Sodoma? Nossa instituição é tão benevolente para com abusos quanto poderia ser na temida Sodoma, com os parênteses de serem as mulheres as que carregam com maior obstinação os desprazeres da escravidão e do medo. O que pensar sobre quem estupra mulheres aparentemente inconscientes? Ou sobre quem não respeita o direito destas de irem e virem? Pois é, parece mesmo que o medo alheio é que os desprazeres de Sodoma se democratizem. Porque, enquanto formos nós, as mulheres, as únicas a sofrermos os abusos sociais e institucionais, continuará tudo na maior paz divina.
No filme produzido em 1962, quando o feminismo ainda estava nas fraldas, fica claro que há uma divisão entre o povo guiado pela mulher, a rainha sodomita, e o povo guiado pelo líder hebreu, com claro maniqueísmo em que, surprise-surprise, o lado cruel/pecaminoso é o representado pela mulher.
Em vários momentos do filme, fica evidente que os hebreus faziam fortes distinções de gênero. Nos momentos de discussão política, em que as mulheres queriam intervir, os homens basicamente desconsideravam suas opiniões e desejos, de modo que ficasse claro uma divisão das tarefas. Às mulheres estariam reservados trabalhos manuais e de limpeza; e aos homens, sobretudo, o arado e as discussões de ordem tática e intelectualmente relevantes. E ainda há quem diga que o Estado contemporâneo é mais invasivo do que algumas ordens antigas. Se não ter o direito de escolher sequer em qual tarefa desejamos operar é ter maior liberdade, ok, deixem-me viver nas cavernas!

Em Sodoma, por conta da prática escravocrata, nem todxs podiam optar quais tarefas lhes seriam mais caras. Muitas mulheres eram compradas para praticar artes para o entretenimento, tais como danças, o que, convenhamos, não difere muito de nossa realidade contemporânea, provavelmente sendo esta muito mais perversa do que aquela.
Por outro lado, em Sodoma, o poder estava centrado nas mãos de uma mulher esperta e ambiciosa, características estas que não costumam ser atribuídas às mulheres da ficção. Ela, inclusive, mantinha debaixo de olhares argutos seu irmão metido a sedutor, metido a esperto, metido a lutador. O metido vivia reclamando por receber ordens de uma mulher e buscando formas de sabotá-la. Contudo, não só fracassou em suas ambições, como acabou morto por Lot.
Aliás, esse é um trecho interessante da ficção. Lot era tão clemente a Jeová, que matou um homem por este ter tirado “a inocência” (entenda-se, rompeu o hímen) de suas duas filhas. Ambas apreciaram o sexo com o príncipe sodomita, mas o orgulho do hebreu ungido não poderia suportar que as mulheres escolhessem transar. O metido a sedutor cometeu dois erros cruciais, segundo o julgamento hebreu, seduziu as mulheres e ainda permitiu-lhes gostarem de sexo.
Contudo, não foram apenas as filhas de Lot que se encantaram com as volúpias sexuais dos sodomitas, o próprio Lot casou-se com a escrava Ildich, oferecida a ele pela rainha sodomita. Mas, ninguém matou Ildich por esta ter dado sexo ao líder dos hebreus e por este ter gostado tanto que até sugeriu exclusividade sob os véus do casamento. Porque se toma como aceitável que os homens gostem de sexo e procurem por ele; já as mulheres, se gostarem do ato, pensa-se que é porque algum homem as seduziu e enganou.
E a sociedade costuma ser tão hilária que dizem que aquelas que gostam de sexo são vagabundas, portanto, mereceriam ser estupradas, provavelmente, para ficarem traumatizadas e gostarem menos do ato em questão; ao passo em que aquelas que não apreciam tanto assim são tidas como mal comidas, logo também precisariam ser estupradas para verem se pegam gosto pela coisa (só que ao contrário).
Ou seja, de um jeito ou de outro, a sociedade desde os hebreus nos ensina que não podemos ser agentes nem mesmo de nossa sexualidade. Aliás, o que se comprova pelos usos de algumas expressões sexuais populares, em que, por exemplo, a mulher “dá” e o homem “come”.