Pedro acabara de sair de uma balada. Podia ainda sentir seu corpo badalar, provável efeito das duas cervejas e da vodca que tomou naquela noite. Aliás, que noite! Encontrou alguns amigos, dançou, beijou.
Aquele garoto ficou a olhá-lo por cerca de 10 minutos, sem parar. Percebeu logo no começo, mas, por algum tempo, ainda tentou desviar o olhar, fingir que não via. Estava com todos os seus amigos, todos heterossexuais; Melissa também estava lá. Ela olhava para Pedro sempre dando a entender como gostaria de estar com ele, como queria se entregar, como o desejava. O jovem garoto percebia, havia percebido há algumas semanas. Tinha sempre uma desculpa, conseguia sempre se esquivar, mas, naquela noite, ela estava realmente deixando mais claro do que nunca que queria ficar com ele.
Pedro não queria; ele, definitivamente, não queria ficar com Melissa. Não que ela fosse feia, desagradável ou possuísse qualquer característica que realmente o incomodasse. O fato é que ela era uma mulher e isso bastava para que o jovem não sentisse atração por ela. Estava cansado de pegar uma, duas, três garotas na balada só para que seus amigos não desconfiassem de nada, só para não deixar que seus pais pensassem em retomar aquelas conversas, sobre como tudo era passageiro, só uma fase, coisas da juventude. Aquilo logo passaria e ele perceberia que, como o mais velhos de 4 filhos, era um verdadeiro varão, constituiria uma família dentro dos padrões morais e daria os netos que eles sempre esperaram.
Pedro sabia que não era uma fase, que não ia passar. Há muito ele já entendera os sinais de seu corpo e de sua mente: como sua nuca se arrepiava quando um amigo fazia, ainda que acidentalmente, suas pernas se encostarem; como ele não sentia o menor tesão em ver um corpo nu de mulher; como eram bons aqueles sonhos em que se via entregue há um outro homem. Ele sabia, fazia bastante tempo que sabia, só nunca soube como dizer a alguém.

O que o seu grupo de amigos, formado por aquela típica classe média-alta da capital paulista, iria dizer quando ele revelasse que era homossexual? Temia não ser mais convidado para jogar futebol, para as tardes na piscina. O que seu pai, reconhecido desembargador, diria ao saber que tinha um filho ‘viado’? Ele não suportaria ser rejeitado. Para evitar isto, rejeitava, cotidianamente, seus próprios desejos, sua verdadeira vontade, seu eu real. Negava-se para não ser negado.
Mas aquele rapaz do outro lado do bar continuava a olhá-lo fixamente, sem desviar um minuto sequer. Mesmo quando Pedro corava e começava a balançar a cabeça fingindo dançar ainda podia sentir aqueles dois olhos a persegui-lo. Não conseguia parar de pensar que devia estar enganado. Aquela boate era frequentada apenas por pessoas heterossexuais, jovens de famílias conhecidas. ‘Viados não andam por aqui. Eles tem seus próprios bares, suas próprias baladas, seus próprios bairros. Este não é um lugar seguro para eles.’ Eles? A quem queria enganar: o Pedro era parte deles.
Não era como se falasse de um alguém desconhecido, uma figura mitológica, um ser a habitar o imaginário coletivo de maneira totalmente caricata. Era ele mesmo essa própria pessoa. E era um garoto normal: fazia faculdade, ia ao cinema, ao teatro, curtia o bar com os amigos; ficava de mal humor, sorria, brigava com o irmão mais novo. Mas não, não podia aceitar aquilo. Ele gostava de futebol, gays não gostam de futebol; apreciava passar os domingos na fazenda, pescando, coisa de macho, macho de verdade. Ah! Para que se enganar – pensava ele – eu sei, mas não posso lidar com isso.
Continuava a ser observado. Já havia ido ao banheiro, começado diferentes conversas com seus colegas, sempre se perdendo no meio dos temas, puxado Melissa para mais perto de si. A menina abriu um franco sorriso no momento, ele percebeu e sorriu de volta. Por dentro, remoía-se. Como podia continuar a negar, fingir, mentir? Não gostava de mentir para ninguém, mas mentir para si mesmo era mais do que uma traição. Era auto-sabotagem. Para que se esforçar tanto para ser algo que não era? Expectativas, muitas expectativas. Ele entendia isso, mas continuava a não fazer sentido colocar as expectativas alheias na frente dos seus desejos, na frente dos seus sentimentos.
Pediu uma vodca. Pura. Sem gelo. Tomou o copo todo de uma vez. Caminhou na direção daquele com quem havia trocado olhares por mais de uma hora. Era chegada a hora. Finalmente, resolveu se permitir a viver tudo aquilo que sempre sentira. Quando faltavam alguns metros, Pedro escuta um grito.
No canto oposto, viu algumas pessoas se aglomerando, como que formando uma roda. De repente, viu dois amigos seus no meio da confusão e correu para ver o que acontecia. João e Matheus estavam brigando. Por causa de mulher, aposto – falou em meio tom, como se já acostumado com toda aquela situação. Em um dado momento, viu que a coisa era um pouco mais séria: os amigos com quem crescera, com quem dividira importantes momentos da sua vida, para quem contava tudo, ou quase tudo, batiam em dois rapazes.
Por alguns instantes, foi complicado entender o que acontecia. Após alguns segundos, ou minutos, ou horas, ele não saberia precisar, deu-se conta da realidade: seus dois melhores amigos batiam em um casal gay. Ficou atordoado, não conseguia se mexer. Não concordava com aquilo – aliás, como poderia? – mas tinha medo de tentar impedir e revelar-se.
Pedro saiu da balada. Podia ainda sentir seu corpo badalar. Possivelmente, era efeito do que havia bebido. Não sabia o que fazer, não havia o que fazer. A hora de agir havia passado e ele nada fizera. Pegou um táxi e foi para casa. Não havia nada a ser feito. Durante todo o caminho, apenas conseguia se perguntar: como me olharei no espelho amanhã de manhã?
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Dia 17 de Maio é o Dia Internacional contra a Homofobia. Muitos o julgam desnecessário. O que a população LGBT quer é instalar uma ‘ditadura gay’, dominar o mundo, acabar com a liberdade de expressão. Não se trata disso, é mais do que óbvio que não se trata disso. Contudo, enquanto houver um Pedro, um José, uma Maria, um/a Darcy que não é capaz de dizer aos pais, aos melhores amigos e ao resto do mundo que pode amar quem quiser e isso não é um problema, esse dia se fará mais do que necessário.
Confira aqui a programação para a data
Ser livre é uma necessidade, uma busca incessante. Mas como ser livre diante da pressão social, diante das expectativas sobrepostas e que exigem que neguemos até mesmo quem somos? Enquanto Pedro não for capaz de se olhar no espelho, todo dia deverá ser dia 17 de Maio.