Texto de Lia Padilha.
“Em algum lugar além do arco-íris, há uma terra, da qual eu ouvi falar uma vez, numa canção de ninar: um lugar além do arco-íris, onde sonhos que você ousa sonhar, se tornam realidade.”
O Mágico de Oz é um filme, entre tantas outras coisas, sobre encontrar um lugar pra nós. Sobre nos encontrar, também. Saber do mundo, saber de si, saber fazer, do mundo, o nosso lugar. Lá, em Oz, era preciso percorrer a estrada de tijolos amarelos. Não tão distante, mas em várias cidades do Brasil, milhares de pessoas saíram às ruas, no dia 26 de maio, em busca desse mundo pra chamar de seu. Um mundo sonhado em igualdade de gênero: um lugar onde homens e mulheres se tratem com respeito, sejam amigos, sem hierarquia, abusos, distorções. Pessoas dispostas a refletir suas ações cotidianas e a construir um mundo de direitos iguais.
Meus tijolos amarelos, percorri em Brasília. Saí de casa pra me juntar à Marcha das Vadias que saiu do Conic, ponto de prostitutas conhecido da capital. E assim como todas as pessoas que saíram de suas casas naquele dia, eu levava ideias e a minha história de vida.

Sou mulher e nunca sofri nenhuma violência física. Meus pais educaram os filhos e filhas de maneira bastante igualitária. O que eu fui fazer na Marcha das Vadias? Uma marcha que se opõe a qualquer violência contra a mulher? É que desde nova — e apesar da educação especial que tive — eu já percebia as desigualdades entre homens e mulheres. Depois de um tempo passei a entender que as opressões e violências contra a mulher estão todas interligadas, sejam elas físicas, sexuais, psicológicas, simbólicas. E a partir daí passei a lutar contra essa cultura que ainda aceita muitas violências praticadas contra a mulher. Revolto-me, por exemplo, ao saber que uma mulher foi tocada por homem sem o seu consentimento.
Essa é a minha história. Meus motivos. Mas as histórias e os motivos que levaram mulheres e homens a marchar foram os mais diversos.
Uma amiga que encontrei na Marcha disse que pela primeira vez pôde usar um short mais curto, blusa decotada, sem receber em troca um olhar invasivo, constrangedor ou preconceituoso.

“Minha mãe me ensina a ser livre”, dizia um cartaz que uma menininha carregava nos ombros ora da mãe, ora do pai. “Educo minha filha para que ela cresça em mundo de igualdade”, me disse a mãe. Um amigo comentou que estava na marcha porque sua irmã fora agredida. E lá, ouvi um senhor de cabelo branco dizer ser feminista desde seus tempos de juventude quando já lutava pela emancipação feminina, na vida pública e privada.
Conversando com uma mulher que devia ter uns 50 anos, ela me explicou os motivos que a levaram à marcha. Contou que passou 20 anos fazendo trabalho doméstico e o marido trabalhava fora e que isso, para ela, sempre foi normal. Mas que depois quis trabalhar fora e arranjou um emprego. O marido a apoiou e ela esperava que o marido fosse dividir com ela as tarefas de casa, o que não foi bem o que aconteceu, dobrando sua carga de trabalho.
Vi mulheres negras carregando cartazes como: “Em terra de chapinha quem tem black é rainha”, mostrando que existem questões específicas e que a luta contra o machismo não faz sentido se não lutarmos também contra o racismo.
Marcha-se contra a intimidação sobre o corpo feminino, contra a educação sexista, contra a sobrecarga de trabalho, contra a ditadura da beleza e os padrões de comportamento. Marcha-se pelo respeito e pela liberdade.
Já éramos mais de 4 mil histórias marchando, quando a chuva choveu. Alguns pensaram em balde de água fria, mas eu acho que a chuva chegou para refrescar e alegrar ainda mais. Alguém mais “friorentx” soltou a música: “São Pedro seu machista, Brasília é feminista”. O grito ecoou e caiu na boca do povo. Um pouco a frente surgiu um arco-íris no céu e alguém gritou: “O movimento é libertário, São Pedro saiu do armário”.

Logo a metáfora mais linda se impôs: era o arco-íris da diversidade sexual, pelo direito de ser homossexual, heterossexual, bissexual, transexual, travesti, ou qualquer outra orientação sexual, sem sofrer discriminação. Porque a Marcha das Vadias é, também, um movimento contra qualquer tipo de opressão.
Minha estrada de tijolos amarelos já não é percorrida sozinha. Como Dorothy e seus amigos fora do padrão – espantalho, homem de lata e o leão – também nós nos unimos em uma caminhada em busca do sonho. Do nosso lugar no mundo. Do nosso mundo. Marias, Josés, Antônios, Claras, Anas, muitos, tantos… caminhamos juntos na marcha, cada um com suas razões, cada um com suas histórias, mas todos em busca de uma sociedade que haja respeito, solidariedade, justiça, igualdade.
Calçamos nossos sapatinhos vermelhos, nossas botas, nossas chinelinhas rasteirinhas, nossas sandálias, nossas havaianas, nossas esperanças e seguimos. A marcha foi um espaço de divulgação de uma mensagem de liberdade. Mas não só. Foi e é um espaço de vivência e crescimento. “Não há lugar como a nossa casa”, dizia Dorothy, a menina do conto do arco-íris. E, na marcha, “em casa” foi como me senti. Nossa luta é para que num futuro bem próximo possamos nos sentir assim em todos os lugares e ocasiões: acolhidas, livres, em casa.
“O corpo é meu, a cidade é nossa”
“Quero ir sozinha pra onde eu quiser, sem medo”
“Quero borrar meu batom, não meu rímel”
“Lugar da mulher é onde ela quiser”
“A violência contra a mulher não é o mundo que a gente quer”
“Entre o homem e a mulher só o coração pode bater”
“Se ser livre é coisa de vadia, então sou uma vadia”
“Vem pra luta vem contra o machismo”
“Sou livre”
*Esse post contou com a colaboração preciosa de Luciana Nepomuceno.
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Lia Padilha não a mesma de ontem e nem a mesma de amanhã. Otimista incansável.