Há duas semanas, Fernanda Marra (@dizamarra) nos enviou um email pedindo ajuda. Ocorreu um caso de assédio sexual em seu ambiente de trabalho. Ela decidiu não ficar quieta, porque passou pela mesma situação. Queria indicações de textos sobre o assunto, para promover um debate com as jovens aprendizes de seu trabalho. Ficamos muito felizes em ajudar e pedimos a Fernanda, que se pudesse, escrevesse um texto para nós contando sobre essa experiência. A resposta foi positiva e este é seu relato.
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Uma, duas conversas entre meninas, daquelas coisas que você acredita e faz. Anos distante da sala de aula, nem imaginava tanta poeira nas engrenagens. Foi importante haver dois momentos: um para ver que destreinara, outro para rever as falhas e apurar o planejamento. Conversei com meninas do órgão público onde trabalho, garotas de dezesseis, dezessete anos que, contratadas por uma instituição, encaram seus primeiros empregos no Estado.
Há alguns dias fui testemunha de uma cena no corredor que me endereçou a uma experiência vivida aos catorze anos com um professor do ensino médio, o assédio geralmente está assim: para quem quiser ver, só que ninguém quer. Talvez eu o tenha notado pelo que a cena me fez lembrar, importa é que, dentre as decisões que tenho tomado, acha-se essa de não me furtar diante dos absurdos que me atravessam.
Não posso negar, tive gana, tive ímpetos quixotescos na hora, mas o bom de contar com os dois fios brancos no alto da cabeça é a velocidade com que ativam os freios e nos livram de umas intempestividades ridículas. Não é preciso esgoelar, também não me calo. Aqui: acabou isso de cochicho indignado que não muda nada, isso endossa a maledicência e ratifica o mundo torto, torpe. O enviesado cruzou meu caminho, vai ser apontado.
Não sei se é possível alcançar minha perplexidade (um tanto ingênua, eu sei) ao notar que o relato do que vira ainda pasma, branca com o susto da cena presenciada em meio ao corredor, não levava nenhuma novidade a quem ouvia. O assédio era reiterado, todos sabiam e hesitavam acerca das providências. Uma ponta de maledicência teria se insinuado na interlocução se não tivesse me feito de desentendida e passado a patrola sobre o arremedo de uma tentativa de culpabilizar a vítima, a menina de dezesseis anos que estava sendo bulinada por um certo… senhor, assim digamos.
Pois bem, minha indiscrição movimentou a água empoçada, uns pulos foram dados, mais para conter o que eu havia espirrado que na intenção de mitigar qualquer lambança. Justificaram-se, agradeceram e informaram que o fato foi levado a conhecimento do dirigente do órgão. Não me saciou. Então deixei a noite vir, a inconformidade ficar se perguntando o que, além da denúncia, estava ainda ao meu alcance fazer.
Esse “ao meu alcance” que pensava era algo assim na ponta dos dedos, só esticando a mão e colhendo, sem esforço, sem desgaste. Acordei como quem desperta de uma epifania. Se entendi alguma coisa do que as pessoas com quem conversei sugeriram foi que a moça já estava, não sabia a que ponto, envolvida com assediador. Imaginei que se fosse verdade, a julgar por mim, os últimos recursos a surtirem efeito sobre ela seriam conselhos e advertências. Então achei que se confio nisso de conferir sentido em tudo quanto havemos passado, nada mais justo que dispor da minha experiência para evitar a ação inescrupulosa de outros canalhas.

Fui a quem era de responsabilidade e prontifiquei-me a conversar com a moça que fora vítima do assédio e oferecer a ela nada mais que o meu relato, minha história como vítima. A ideia agradou mais que eu previa, porém preferiram que não falasse diretamente com a moça, mas que a ação tivesse um alcance maior e envolvesse todas as garotas contratadas pela fundação, até como forma de prevenir outros incidentes. Hão de concordar que não é todo dia que oferecem asas a cobra, certo? Imediatamente topei e hoje foi o dia de nossa “conversa entre meninas” em dois atos.
Pela manhã estava ansiosa, havia preparado material, sabia o que queria dizer, mas não organizei muito o raciocínio. Tão curioso perceber ali na hora a falta que faz um planejamento, coisa que estou farta de saber, careca de explicar a importância de um roteiro, um “plano de aula”. Falhei sem falhar porque fiz muita questão tacar o coração e alardear sobre o tempero. Mais que qualquer informação eu queria um vínculo, uma abertura que se fizesse pela identificação e pelo afeto. Fui falando meio espontânea, meio lacônica, despejando as conclusões enquanto assentia que interrompessem. Claro que não interromperam. Estavam tímidas, meio surpresas com a situação. Mas apesar do atropelo senti empatia, percebi no olhos de cada uma quando fiz um talho. Recebi até um agradecimento muito verdadeiro e saí para o almoço engasgada.
Achei forte, achei que me trouxe recordações de sala de aula. Esse lugar que, hoje sei, tem muitos “quês” de enfermaria. É sempre um pouco triste me lembrar que estou afastada desse ofício escolhido tão precocemente e com tanta disposição para pagar seu preço alto. Enfim, tive a chance de replanejar. Voltei aos textos que peguei emprestado lá nas Blogueiras Feministas, lembrei-me do conhecimento partilhado, do verbo sem tradução: “to elicit”, dos fios condutores, dos arremates. Ficou bem bonito o plano e, não sei se por estar mais segura na repetição da fala, se pelo planejamento mesmo, ou se por ambas as coisas, estive mais calma e segura para permitir que as meninas da tarde participassem.
Foram incríveis, umas queridas. Foram atentas e precisas nas colocações. Impressionei com o quanto pude chegar até elas, o quanto se abriram e compreenderam o propósito de estarmos ali. Porque falei de mim, falaram delas. Confiaram. Coloquei de lado a violência física e falamos de símbolos. A partir do texto da Paula Penedo; depois, questionamos nossa impotência diante dessa violência que tantas vezes sequer percebemos e acabamos perpetuando, dessa vez nosso ponto de partida foi o texto da Talita R. da Silva. Apresentei-lhes uma cartilha do Ministério da Saúde, de 2008, que aborda frontalmente as questões mais práticas sobre o assédio: definições, legislação, exemplos que ajudam a perceber quando acontece e atitudes passíveis de serem tomadas pela vítima. Trocamos experiências, falamos de filmes e concordamos que estarmos atentas às armadilhas e não nos encolhermos frente à violência são formas de romper a continuidade do patriarcado, algo para ser perseguido e aprendido diariamente.
Abrimos umas fendas que nunca vou alcançar a profundidade. Já havia dado por encerrada a conversa e uma delas sempre retomava, sentia uma resistência gostosa do grupo em deixar a sala. Uma miudeza que valeu por si, só pelo fio que nos uniu quando sentamos em volta de uma mesa para tornar explícita a cumplicidade e aguçar o faro para o desrespeito. Isso eu tenho certeza de que captaram, o que elas certamente não sabem é o quanto aumentaram minha autonomia de voo, que rateava, para esse meu propósito incessante e árduo de imprimir sentidos, inventar meus próprios significados.
Fernanda Marra, graduada em Letras pela UFG, mantém o blog Marés e Ressacas desde 2009.