Texto de Tatiana Lionço*.
Na época da inquisição, muitas mulheres foram queimadas em fogueiras por não corresponderem à compulsoriedade do matrimônio, por praticarem curas baseadas em conhecimentos das ervas da natureza, ou por desafiarem a moralidade patriarcal. A moralidade patriarcal sempre esteve a serviço da dominação masculina, tal como sugerida pelo sociólogo Pierre Bourdieu. O patriarcado tem origens na moralidade judaico-cristã, embora tenha sido incorporado pela máquina do capital.

A naturalização do patriarcado como parâmetro de sociabilidade legítima é um forte pilar capitalista, já que dispõe às mulheres o obrigatório cumprimento de tarefas tais como o cuidado de filhos e filhas, o cuidado de pessoas idosas, a manutenção da higiene doméstica. Este trabalho não remunerado é uma das principais estratégias de manutenção da dominação masculina, já que libera muitos do exercício cotidiano de tarefas que ocupam o tempo, desgastam o corpo, sobrecarregam a vida e os afetos de mulheres, que também elas mesmas lutam por garantir seus direitos trabalhistas no mercado formal de trabalho.
O patriarcado está no centro do discurso fundamentalista de base cristã, que assistimos cotidianamente veicular injúrias contra mulheres e contra aqueles que não reiteram a sociabilidade de base sexista, misógina e heteronormativa. Este discurso fundamentalista glorifica o poder do pai e da propriedade privada, além de continuamente desmentir aos fiéis as infrações cometidas por suas lideranças religiosas e políticas. Consideram que os discursos de denúncia à violação de direitos cometidos em nome de Deus sejam em si blasfêmia ou indício de possessão demoníaca. Qualificam como pecadoras e demoníacas as mulheres que lutam pelo direito ao aborto medicamente assistido, que expressam desejo e amor por outras mulheres. Difamam as putas, as travestis, os e as homossexuais e transexuais e mesmo aquelas pessoas que simplesmente se ocupam da reflexão sobre as incoerências dos fundamentalistas ao infringirem reiteradamente os próprios mandamentos divinos, aos quais dizem estar subordinados. “Não usarás teu santo nome em vão”, “não levantarás falso testemunho ao teu próximo”.
Em nome de Deus, crimes são cometidos, entre os quais os mais frequentes a difamação, a calúnia, a injúria, a violação da dignidade, a violação da integridade física e psíquica das pessoas, incluindo aí a de fiéis. Estamos em tempo de denunciar inclusive a falsa dualidade entre gente de fé e aqueles indignos de consideração por parte do Estado, da sociedade, ou mesmo de Deus. Liberdade de crença é um direito garantido constitucionalmente. Este é um direito que se baseia na premissa da dignidade humana como inviolável. Este é um direito que prevê a cada pessoa a liberdade na significação de premissas, incluso as religiosas. Este é um direito que decorre do direito fundamental da dignidade, o que é o mesmo que dizer que este direito, o da liberdade de crença, nunca poderia sustentar a difamação, a calúnia e a injúria. Estas infrações não são apenas penais, de acordo com a lei dos homens, mas também infrações aos mandamentos divinos.
Em um Estado democrático de direitos, todas as pessoas merecem respeito e consideração. Isso não é o mesmo que afirmar que devemos acolher e tolerar sem resistência os abusos que vem sendo cometidos em nome de Deus. Para estes abusos, cabe a aplicação da lei dos homens, que inclui entre os crimes a expressa desqualificação do status moral das pessoas. O princípio ético da universalidade de direitos humanos e sociais orienta o reconhecimento e respeito à diversidade moral na sociedade, mas não prevê impunidade a infratores simplesmente por atuarem em nome de Deus.

Um Estado laico é aquele que assume não orientar as práticas de governabilidade pela doutrina religiosa. No Brasil, a laicidade é pluriconfessional, o que significa que o discurso religioso pode comparecer na estrutura do Estado, desde que atenda aos princípios éticos de um regime democrático. Neste Estado, ateus tem o mesmo status moral que católicos, evangélicos, budistas, umbandistas e por aí afora. Não há crença superior a outras crenças, mas há sim uma carta magna, a Constituição Federal, que estipula condições para a liberdade de crença e de expressão, cerceada pelo princípio da inviolabilidade da dignidade humana.
Demoníacas, rebeldes ou recalcadas, nós, mulheres, reivindicamos respeito à nossa liberdade de crença, respeito às nossas lutas políticas por melhores condições de vida. E iremos continuar denunciando como injúria, calúnia ou difamação o exercício de desqualificação moral que recai sobre nós, mesmo quando seja proferido em nome de Deus.
*Tatiana Lionço é doutora em Psicologia, professora de graduação e mestrado em Psicologia do UniCEUB e membro-fundadora da Cia. Revolucionária Triângulo Rosa.