A Convenção do Cairo e seu processo de revisão de 20 anos

Texto de Juliana Cesar.

A Convenção Internacional sobre População e Desenvolvimento – CIPD, amplamente conhecida como a Convenção do Cairo, de 1994, instituiu internacionalmente as bases para uma visão de desenvolvimento fundada na importância das pessoas como sujeitos de direito.

O documento resultante da CIPD foi o Programa de Ação do Cairo. Hoje ratificado por 179 países, ele traça iniciativas no âmbito da população, igualdade, direitos, educação, saúde, ambiente e redução da pobreza. Entre os marcos trazidos pela CIPD e seu Plano de Ação estão diretrizes para:

  • Proporcionar o acesso universal ao planejamento familiar e serviços de saúde sexual e reprodutiva e direitos reprodutivos;
  • Assegurar a igualdade de gênero, empoderamento das mulheres e a igualdade de acesso das meninas à educação;
  • Abordar o impacto individual, social e econômica da urbanização e migração;
  • Apoiar o desenvolvimento sustentável e abordar as questões ambientais associadas a mudanças populacionais.

A CIPD vem passado por revisões periódicas a cada cinco anos, a fim de verificar o estado da implementação do Programa de Ação e atualizar seus conteúdos para temas relevantes emergentes. A CIPD, por exemplo, junto com os marcos acrescidos na revisão de cinco anos, formaram a base dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

Está em curso o processo de revisão operacional pelos 20 anos da CIPD. Seu produto final será um Informe Global sobre os avanços e desafios correntes sobre os temas abordados pela Convenção, que será apresentado pelo Secretário Geral das Nações Unidas em uma Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas em setembro de 2014, presidida pelo seu Secretario Geral.

O Brasil pode desempenhar um papel fundamental na promoção, defesa e garantia de diversos direitos que são caros à população global e indispensáveis para o desenvolvimento humano justo e sustentável em nosso planeta. Espera-se do Brasil a liderança regional nos temas dos direitos e saúde sexual e reprodutiva, prevenção, tratamento, cuidado e atenção ao HIV e à AIDS.

Presidenta Dilma Roussef discursa na Rio +20, ao fundo um painel com a frase “O futuro que as mulheres querem”. Ela lamentou a supressão de temas ligados aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres no documento final da Rio+20: “É uma pena que nesse documento não haja uma referência tão clara sobre isso”. Foto de Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Além da revisão quinquenal, a cada ano a Comissão de População e Desenvolvimento (CPD) da Organização das Nações Unidas discute assuntos ligados à Convenção do Cairo. Os encontros geram resoluções que complementam o conteúdo da convenção. Em 2012, de 23 a 27 de abril, teve lugar a 45ª Sessão da CPD, dedicada ao tema”Adolescentes e Juventude”.

As negociações na CPD foram difíceis, como de hábito. Os grupos dos países árabes e africanos trouxeram posições muito conservadoras e que impediam avançar rumo a um acordo. No mesmo sentido, a Santa Sé (Vaticano) mostrou-se extremamente vocal, opondo-se terminantemente a qualquer menção, mesmo que indireta, a qualquer termo relacionado a sexualidade ou direitos reprodutivos. Houve momentos em que seu representante chegou a pedir que se retirasse a expressão “direitos humanos” do texto.

Os países europeus, em sua maioria, se articularam através de um Likeminded Group (grupo de posicionamentos similares). Deles, contudo, fez falta ao longo das negociações uma atuação mais contundente. A ausência de alguns países tradicionalmente líderes e o fato de haver muitos negociadores em sua primeira CPD fez com que apenas nos últimos momentos os países europeus viessem a se posicionar com mais força. A mudança de postura dos países europeus, por sinal, deveu-se em grande parte à atuação de organizações não-governamentais da ala progressista, favorável ao fortalecimento dos direitos e da saúde sexual e reprodutiva, que produziram e guiaram diversos documentos de recomendação de linguagem e sugestões de estratégia para a negociação, socializados e discutidos com as delegações simpáticas a este processo.

O maior quociente de vozes progressistas acabou por vir do grupo do MERCOSUL, bastante liderado pelo Brasil – a grande referência do grupo e de toda a CPD – e pelo Uruguai. Apesar do nome, o MERCOSUL incluía também a Bolívia, Colômbia e República Dominicana, por exemplo. Esta expansão dez com que passasse, a certo ponto, a se chamar Likeminded Group da América Latina – LMLA. Outro grupo que colaborou bastante para o resultado positivo ao fim da sessão foi um que expressou dissidências dentro do Grupo Africano, composto pela África do Sul, Gana, Quênia e Zâmbia. Algumas delegações asiáticas, como a das Filipinas, também fizeram intervenções cruciais para a manutenção de texto positivo na resolução.

O processo de negociações foi difícil, e verificava-se a impossibilidade de acordar a linguagem parágrafo a parágrafo. Apesar de em diversos momentos a condução do facilitador ter favorecido o travamento das discussões, talvez uma postura acertada de sua parte foi a de determinar a organização do texto em blocos temáticos, agrupando parágrafos de mesmo tema, o que favoreceu uma visão mais clara do que se estava propondo para cada tema no texto como um todo.

O texto apresentado pelo facilitador foi considerado bom pela ala progressista, pois incluía diversas referências à afirmação e garantia de direitos e saúde sexual e reprodutiva de adolescentes e jovens, incluindo temas polêmicos como a educação sexual integral, o HIV e a AIDS, a mutilação genital feminina e os casamentos precoces e forçados. Os países do pólo conservador, no entanto, se recusaram a aceitá-lo, uma vez eram temas que iam diretamente de encontro às suas posições. Durante a plenária de apresentação do texto, esta resistência foi formalmente expressa, e coube ao Chair convocar as delegações a negociar adequações técnicas que permitissem a adoção de uma resolução ao fim da sessão.

Ao voltar a plenária o texto foi formalmente adotado como resolução, ao que se seguiram as manifestações individuais dos países. Os progressistas saudaram e elogiaram a resolução adotada, enquanto os conservadores fizeram as ressalvas de praxe, em geral para explicitar que seus países terão soberania para cumprir com a resolução segundo suas leis internas ou para determinar que as referências a direitos reprodutivos não compreendem o recurso ao aborto nos países em que ele não é legalmente permitido.

Ao final do ciclo da CPD, podemos analisar que o resultado final superou as expectativas. A resolução adotada foi o primeiro texto acordado internacionalmente direcionado à população adolescente e jovem a se referir a temas como os destacados abaixo:

“Para proteger e promover os direitos dos jovens e adolescentes de controlar sua sexualidade livre de discriminação, violência e coerção” (PP15);

“Para proteger e promover os direitos humanos e liberdades fundamentais, independentemente da idade e estado civil …. e da proteção dos direitos humanos de jovens e adolescentes a ter controle e decidir livre e responsavelmente sobre questões relacionadas à sua sexualidade, incluindo a saúde sexual e reprodutiva” (OP7);

“Prover serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o aborto seguro em casos legalizados e, em circunstâncias em que o aborto não é proibido por lei, treinamento e aparelhamento dos serviços de saúde e do profissionais responsáveis para garantir que o aborto seja seguro e acessível” (OP23);

“Prover atendimento e informações sobre serviços de saúde reprodutiva e educação aos jovens, com pleno respeito à sua privacidade e confidencialidade, livre de discriminação. Fornecer educação e informações abrangentes sobre sexualidade e saúde reprodutiva, direitos humanos e igualdade de gênero, que lhes permitam lidar de forma positiva e responsável com sua sexualidade”(OP26).

Disposições sobre emprego, participação efetiva de adolescentes e jovens, casamento precoce e forçado, HIV e outros temas também estão contidas na resolução, que pode ser acessada, em Inglês, clicando aqui.

[+] Rumos para Cairo +20 – Compromissos do governo brasileiro com a plataforma da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (.pdf)

[+] Relatório da Conferência Internacional sobre população e Desenvolvimento – Plataforma de Cairo, 1994 (.pdf)

[+] Cairo+10: os desafios no Brasil e na América Latina por Tânia Cooper Patriota (.pdf)

[+] Direitos reprodutivos no Brasil (.pdf)

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Juliana Cesar é uma advogada feminista que só poderia ser considerada blogueira se Facebook ou Twitter entrassem na conta, mas dedicada de coração aos direitos humanos e direitos das mulheres. Há quase três lustros (é, só ela usa esta palavra nesse sentido) mantém um relacionamento sério com os direitos sexuais e reprodutivos e o enfrentamento da violência contra as mulheres. Santíssima Trindade, para ela, costumam ser as Convenções de Viena, Cairo e Pequim.