Foi Bonita a Luta, pá

“cada vez mais se vive um tempo
em que as mulheres precisam ser de armas”.

Tenho grande dificuldade de escrever para o Blogueiras Feministas porque suponho aqui – e encontro – textos abrangentes, complexos e atuais, enquanto o que escrevo tende a ser pessoal, simples e, muitas vezes, guiado por um eixo temporal muito específico – ou seja, atrasada em muitas coisas, só escrevo sobre quando consigo dar-lhes um sentido.

Ainda assim comprometi-me, pois o Blogueiras Feministas tem-me dado tanto e eu queria dar (-me) em retribuição, e é a propósito disso que vem esse texto. Originalmente eu escreveria sobre Hilda Doolitle, poetisa, tradutora e memorialista norte-americana, mulher de pensamento moderno e feminista, de relações amorosas livres e de vida complexa e intensa. Vale a pena tentar saber mais sobre ela. Porém, ah, porém, como canta Paulinho da Viola, aconteceu-me uma Portela. Aconteceu-me Lisboa. Ou melhor, aconteceu-me Portugal.

Um amor geralmente é uma pergunta. Uma inquietação. Aqui chegando logo vi que sabia tão pouco, ou mesmo nada.  E na mesma medida que chegava o encanto, chegava a vontade de conhecer. Essa suposição ingênua e recorrente de que, ao desvendar o objeto de amor, o teremos mais nosso. Quando muito, acontece de sermos mais dele. Mas não é sobre o amor esse texto, embora ele não seja possível sem que houvesse tido a paixão. Não só a minha, ainda inicial, mas de Isabel Lindim. Pois é dela este livro me caiu em mãos: Mulheres de Armas, 258 páginas, Editora Objectiva.

Não se trata de uma resenha, não li o livro como se deve para fazer uma: com atenção rigorosa, senso crítico e apreciação de conteúdo e estética. Não, eu mergulhei nele. Questionei-me, inquietei-me e, principalmente, emocionei-me. Mulheres de Armas conta as histórias de mulheres que participaram da luta armada anti-fascista combatendo a ditadura em Portugal, engajadas nas Brigadas Revolucionárias. Mas é preciso ir devagar, ou, antes, é preciso organizar as informações, pois pode ser que haja quem nada saiba – como eu – sobre isso.

Portugal viveu, por 48 anos, um regime autoritário (inicialmente sob comando de militares, depois governado por Salazar e, por fim, por Marcello Caetano). Neste período, os partidos políticos passaram para a clandestinidade e foi nesse contexto que surgiu o Partido Revolucionário do Proletariado e dele e com ele, as Brigadas Revolucionárias. As Brigadas Revolucionárias eram uma organização de esquerda que acreditava na importância da luta armada para a derrubada do regime facista e para a obtenção da autonomia das colônias. E, na dinâmica das Brigadas, as mulheres portuguesas assumiram um protagonismo que não lhe era próprio – não por ausência de talento, coragem ou inteligência, mas pelo próprio contexto cultural, social e político que configuravam – e configuram – uma sociedade machista.

Isabel do Carmo e Isabel Lindim

Essas mulheres participaram ativamente das ações, montaram bombas, foram torturadas, colocaram explosivos em quartéis, envolveram-se no assalto a bancos, criaram e mantiveram fachadas para a clandestinidade do movimento. Mulheres que ousaram sair da acomodação política e de papel de gênero. Escreve uma dessas mulheres ousadas – e, a propósito, mãe da autora do livro e uma das fundadoras das Brigadas Revolucionárias – “não tínhamos deuses, nem santos, nem altares (…) E aqueles para quem já não há deuses ou semideuses humanos respondem perante si próprios e o desejo de mudar o mundo”. Nesse contexto, conta-nos ela, a opção pela luta armada vinha aliada à ordem ética expressa de não matar. “O respeito pela vida humana significa que cada pessoa é irrepetível e não temos o direito de acabar com a vida, porque isso será irreversível. Provocar a morte é um ato irreparável”. Afora isso, acrescenta ela, as mulheres envolvidas no movimento “Não respeitavam nada: nem a hierarquia patriarcal, nem a boa ordem, nem sequer seus interesses próprios. Respeitavam apenas a ideia assumida e radical. Saíam do seu eu individual, para passar ao seu eu colectivo. Ou então assumiam radicalmente o seu próprio eu, abafado até então por convenções”.

O livro traz-nos, além deste texto maravilhoso de Isabel do Carmo, a história de catorze mulheres que ,de forma figurada ou literal, armaram-se e lutaram ativamente para a transformação de si mesmas e do mundo. Há a jovem de minissaia azul, provavelmente a primeira mulher a assaltar um banco em Portugal. Certamente a primeira a fazê-lo para financiar uma luta revolucionária. É ela quem lembra: “fiz algo profundamente proibido, venci o medo”. Há a Joana, que levava detonadores na cintura, fazendo-se de grávida, para montar as bombas. Fazia-se de grávida de um futuro outro para o filho que realmente tinha. Cada relato, cada memória, cada história comove e ensina. Todas importantes para mim, mesmo antes de eu as saber.

E depois, depois foi o 25 de abril e, pelo menos por um momento, aquele momento, a linda festa que permanece em memória a me incendiar a esperança de que é possível. E fica-me a vontade de cantar, como cantou Chico, a beleza da luta que se sabe em festa: