É hora de perder a paciência!

Esta é uma semana muito importante, uma semana importante para o movimento negro, o movimento feminista e, depois de mais uma morte de militante LGBT no final de semana, para o movimento LGBT. O tema que vem norteando esta semana e a maioria das outras semanas do ano, continua a ser, para nós, a violência cotidiana, o processo de nos tornarem seres alheios as decisões políticas e de ocupação dos espaços de poder. É o recrudescimento da nossa própria opressão.

A discriminação racial é um dos pilares das desigualdades do país e ainda persiste a divisão da sociedade entre a “Casa Grande” e a “Senzala”, o “sinhôzinho” e a “mucama”, a falsa democracia racial que estrutura privilégios de uma pequena parcela em detrimento da maioria absoluta da população. O racismo é estruturante na sociedade capitalista e patriarcal e, no processo de histórico de construção da nação brasileira, o povo negro sempre esteve às margens da sociedade, colocado no centro de teorias higienistas que ainda prevalecem, a exemplo das ações de criminalização da pobreza e genocídio da juventude negra. (OLIVEIRA, Liliane. Por que o feminismo tem que ser antirracista)

A compreensão de que as opressões vividas por nós são pilares estruturantes deste sistema em que vivemos é fundamental, assim como a compreensão de que apenas nós organizados para pressionar e ocupar os lugares na política que nos foram historicamente negados é fundamental. Fundamental para pensarmos qual sociedade queremos e como os processos que vivemos de opressão racista, machista e homofóbica não são apêndices para um projeto de sociedade igualitária.

A relação existe quando identificamos que o genocídio da juventude negra existente em nosso país de uma forma geral, ganha a pauta junto a sociedade pelos acontecimentos dos últimos cinco meses nas periferias da grande São Paulo. E, a criminalização das mulheres que realizam abortos no país e morrem ou tem atendimentos negados nos postos de saúde é mais uma destas intersecções. Mas não se dão apenas aí. Nós morremos a cada dia quando nossas reivindicações são colocadas como a cereja do bolo das reivindicações políticas, quando servem de moeda de troca para as ditas políticas gerais mais importantes.

Não é de 2012 que vemos um recrudescimento da violência policial em nosso país e mais precisamento no estado de São Paulo, só lembrar dos crimes de maio e todo o debate sobre desmilitarização da polícia em nosso país. Além obviamente do debate sobre direitos sexuais e reprodutivos, pois as mulheres negras tem mais chances de morrer de abortos ilegais e inseguros e ao recorrer aos postos de saúde terem atendimento negado. Pois, somos nós quem mais precisamos do serviço público de saúde, que hoje está entregue a privatização e muitas vezes é gerido por organizações sociais ligadas a igrejas diversas. Somos colocadas para morrer de hemorragia, julgadas e condenadas a morte por médicos e enfermeiras, assim como os jovens negros são julgados e condenados a morte pela Polícia Militar em todo país. (FRANCA, Luka. Os jovens negros morrem e as mulheres negras também morrem)

Participantes da Cúpula dos Povos, evento paralelo da Rio +20, fazem protesto nas ruas da cidade. Foto de Marcello Casal Jr./Agência Brasil.

Acredito piamente que nós mulheres, negrxs e LGBTs não somos a cereja do bolo, somos a farinha, somos a coluna cervical desta sociedade, justamente por sermos os setores mais oprimidos e alvo mais fáceis para políticas de afrouxamento trabalhista, previdenciário e social em geral. Somos nós que estamos desde o princípio vitimados pelas políticas de terceirização do trabalho, basta olharmos quem faz a limpeza das faculdades, empresas e afins. Quem é maioria nos serviços de telemarketing, de trabalho doméstico e tantos outros postos de trabalho categorizados como trabalhos mal-remunerados, sem direitos assegurados, sem estabilidade e tantos outros “sem” de uma lista infinita.

Somos nós que não fomos feitxs para ocupar os espaços públicos, nosso papel na sociedade é o de garantir nos bastidores a sua ordem, o seu funcionamento e quando questionamos estas coisas ainda somos vistos como aqueles que não cumprem o seu papel. Não há como não falar de combate a violência em geral se não falarmos do nosso alijamento do processo político.

Se formos afinar o nosso olhar para a sociedade, para sua estrutura de organização, é perceptível o por que estamos tão alheios da realidade política. Não é imaginação, mania de perseguição e nem nada disso. É o fato de que estas pautas em conjunto, pesando uma outra forma de sociedade, contribuem para uma desordem. E, quando falo de desordem, é o colocar de cabeça para baixo o que vivenciamos hoje: uma necessidade positivista de manter os caminhos de forma ordenada, de forma que alguns possam controlar sem perder sua estruturação de poder. Acho que é isso o projeto de totalidade que venho batendo tanto na tecla, pois pensar projeto de estruturação social de forma segmentada, cada um cuidando do seu já se mostrou ineficiente, limitado mesmo.

Nos acostumamos a criar super-heróis, a não criticar, pensamos dentro de caixinhas: as mulheres pensam as mulheres, os negros pensam os negros, os LGBTs pensam os LGBTs.Tudo de forma muito hermética, na maioria das vezes biologista e sem levar em conta a questão social conjuntamente. Enquanto as “minorias” pensam política apenas para as “minorias” a figura masculina, branca e hétero ocupa o seu lugar de direito: o lugar de pensar, formular e apresentar para sociedade uma política geral, bem acabada, bem organizada, bem programada, quase completamente positivista. Sem dialética alguma, sem pensar quem é que tá pisando o pé no barro e tendo que experimentar o formulismo dos iluminados. (FRANCA, Luka. O feminismo como parte de um projeto de totalidade)

A interseccionalidade entre os debates existe, são dados concretos da realidade, porém é preciso pensar para além do diagnóstico destes dados. É preciso reflexão e formulação política. Se a maioria das mulheres que sofrem em nosso país são negras como dissociar a luta feminista da luta antirracista? Como é possível não encarar conjuntamente também o debate de combate a homofobia? Sendo que quem morre neste país somos nós, os índigenas e os setores que podem impor uma dinâmica diferente a ordem estabelecida? Uma ordem estabelecida na sociedade que reverbera na política e na gerência do poder. E, quando falo poder não é apenas o poder institucional, mas aquele que organiza e gere nossas vidas cotidianamente também.

Esta semana, este mês, este ano nos trazem um desafio nada fácil, um desafio de articular diversas demandas que num primeiro momento parecem realidades tão distantes, tão desconexas, mas que ao olharmos de forma mais atenta tem tudo haver umas com a outras. É o combate contra aqueles que não suportam ver a maioria da população pegar nas rédeas seus próprios destinos e disputarem espaços que historicamente não são os nossos espaços, pautando debates espinhosos, incômodos e difíceis.

Como assim falar do genocídio da juventude negra e de um necessário repensar profundo do modelo de segurança pública que nós perpetuamos e que ajuda a nós mulheres sermos mau-tratadas ao proceder denuncias de agressão nas delegacias? Ou debater nossos direitos sexuais e reprodutivos quando estes vão de encontro a um projeto de privatização da saúde? Estamos em um momento onde o perder a paciência com a nossa estigmatização e alijamento social é cada vez mais necessário, não apenas em boas análises  em reuniões, boas reflexões, mas no tornar tudo que criticamos e diagnosticamos em ações concretas. Seja ao ocupar as ruas e mostrar que sim existimos, mas não existimos apenas no 8 de março, 28 de junho ou 20 de novembro. Existimos todos os dias, enfrentamos a dura batalha de sermos mulheres, negrxs, trabalhadorxs e LGBTs mês após mês, ano após ano.

A personagem que ilustra a Blogagem Coletiva Mulher Negra 2012 é Bell Hooks, autora de Alisando nossos cabelos.

Precisamos ocupar os lugares que nos são negados, pautar os debates que estão embaixo do tapete incomodando e que ninguém tem coragem de falar. Só nós podemos falar que estamos cansados de morrer, apanhar e ter diferenças em direitos sociais abissais. Falar que não damos uma parte de nós para ganhar a outra, pois queremos ser todos e não um frankstein, remendado, remoído.

Nós somos a base que estrutura a sociedade e nós podemos desorganizar para organizar algo melhor, criar a desordem para realmente termos a nossa emancipação conquistada, pois as vitórias que tanto reivindicamos, e ainda são poucas, só foram conseguidas assim, na ousadia, na criatividade, na coragem de dizer: nós vamos tomar estas rédeas e fazer valer o fato de juntos podermos conquistar mais e mais.

Não é tarefa fácil, não é tarefa rápida, mas é a tarefa que temos.