Embora a articulação entre esses três fenômenos da cultura patriarcal seja evidente para a maior parte dxs feministas, penso que pode ser interessante refletir sobre o modo como se estabelece essa relação — que é, afinal, o que nos permite perceber como é fácil passar da piada “inofensiva” à efetiva justificação do crime sexual. Como bem sabemos, borrar os limites discursivos é uma das estratégias do patriarcado para a afirmação de seu poder, o que lhe permite sufocar vozes e silenciar divergências. Desse modo, explicitar o modo como se articulam os diversos eixos de opressão sempre pode ser útil para a elaboração de mecanismos de resistência.
O ponto fundamental é a compreensão de que o slut shaming implica, necessariamente, a percepção de que nenhuma mulher tem valor moral intrínseco: este pode ser-lhe a todo momento concedido ou negado a partir de critérios arbitrariamente estabelecidos. Por conseguinte, cabe sempre à mulher apresentar-se, a cada momento, como “respeitável” consoante os princípios do patriarcado, o que implica submeter seu corpo e sua conduta sexual ao tribunal sexista.
A autovigilância que as mulheres são obrigadas a adotar, nesse âmbito, não é algo que se possa reduzir à escolha da roupa adequada para determinada ocasião, ou da melhor atitude a se adotar num contexto específico; o que está em jogo não é a mera censura devido à “etiqueta” ou ao protocolo social: é o seu próprio valor moral como indivíduo, apenas categorizável na estrutura patriarcal binária que qualifica as mulheres como “vadias” e “não-vadias”.
Todavia, essa categorização é sempre provisória, visto não ser estabelecida a partir de qualquer condição intrínseca da mulher — estando, por conseguinte, permanentemente sujeita à (re)avaliação pelo tribunal sexista. Desse modo, toda mulher é potencialmente uma “vadia”; nenhuma mulher tem lugar assegurado como “não-vadia”.
Qualquer mulher “decente” passará a ser “vadia” se o patriarcado assim o decidir, por qualquer razão que lhe pareça suficiente (e é por isso que mesmo as mulheres “decentes”, na medida em que alimentam as práticas do slut shaming, estão sempre construindo sua própria armadilha, uma vez que endossam a arbitrariedade daquele julgamento). E, no âmbito sexista, a “vadia” é o alvo de uma radicalização do discurso corrente que recusa à mulher o direito sobre seu corpo.
Para dizer de outro modo: se, na sociedade patriarcal, mulher nenhuma tem pleno direito sobre o próprio corpo, no caso da “vadia” esse direito é recusado por completo. A “vadia” é a mulher que está sempre e inteiramente disponível; que, não sendo “respeitável”, está todo o tempo sujeita a qualquer tipo de uso ou abuso — físico, sexual ou psicológico.
É fácil perceber os desdobramentos dessa lógica perversa. A objetificação (que prefiro denominar “reificação”, já que a mulher é reduzida ao estado de “coisa”, para além de ser tomada como “objeto sexual”) não é algo que derive do slut shaming, mas algo gerado pela dinâmica da sociedade patriarcal, que determina a condição da mulher como “outro” (portanto, como aquela que ocupa necessariamente uma posição periférica e inferior, que existe em “segundo plano”).

Não obstante, a objetificação/reificação e o slut shaming se articulam para a qualificação da mulher como uma “coisa” sexualmente disponível; e, como toda mulher é uma “vadia” em potencial, pode-se sempre partir do pressuposto de que a objetificação/reificação de nenhuma mulher é inteiramente injustificável. Daí, é claro, a legitimação do estupro — e a relutância do patriarcado em qualificar as vítimas da violência sexual como o que realmente são: vítimas. “Como ela estava vestida? Que ambientes costumava frequentar? Quando, como e com quem mantinha relações sexuais?”, perguntará o tribunal sexista, adotando como ponto de partida os mesmos princípios: toda mulher é potencialmente uma “vadia”, portanto objetificável/reificável, portanto sujeita ao estupro — que é, afinal, legitimado, já que à mulher é recusado o direito sobre o próprio corpo.
O que nós, homens, temos a ver com isso? A resposta é: TUDO. Porque nós, homens, temos acesso privilegiado ao tribunal sexista: esse é um direito que nos é garantido pelo patriarcado (que alguns consideram um dever, já que somos constantemente convocados a endossar o slut shaming, opinando sobre o “índice de vadiagem” das mulheres). Ademais, nós temos o direito de determinar efetivamente quais mulheres são categorizadas como “vadias”; prova concreta disso é que, quando um homem divulga fotos nas quais aparece mantendo relações sexuais com uma mulher, é sobre ela que recai a condenação por parte da esmagadora maioria da sociedade — não sobre ele, que ainda é por muitos tratado como herói, recebendo tapinhas nas costas pelo “feito”.
Contudo, é possível resistir. Podemos recusar o exercício desse direito. Podemos reconhecer o pleno direito das mulheres sobre o próprio corpo e sobre a própria sexualidade — recusando-nos a praticar o slut shaming, a objetificação/reificação e a endossar os discursos de legitimação do estupro. Fazer isso é reconhecer que cada mulher é um ser humano que, como tal, é portador de direitos inalienáveis e de um valor moral intrínseco. Fazer isso é participar de uma extraordinária revolução denominada Feminismo.
Autor
Henrique Marques-Samyn é homem, negro, pró-feminista. escritor e professor da UERJ.