Crowdfunding: R$ 25 pra mudar o mundo (e apoiar um projeto feminista)

Texto de Jeanne Callegari.

Você sabe o que é crowdfunding? É um sistema de financiamento coletivo de projetos bacanas, sejam de cultura, arte, esportes, eventos, tecnologia… Existem vários modelos e formatos, e dá pra começar a apoiar, em geral, com R$ 25. Não se trata, exatamente, de doação; os apoiadores recebem contrapartidas, proporcionais ao apoio dado. Aqui uma explicação mais detalhada:

Crowdfunding é um sistema no qual um projeto qualquer se financia a partir da contribuição de base de uma comunidade de apoiadores. Os primeiros projetos foram artísticos. Em 1997, os fãs da banda de rock Marillion conseguiram captar US$60 mil para financiar uma tournê. O sucesso de uma comunidade de apoiadores em viabilizar um projeto acabou por profissionalizar o processo e inúmeras plataformas digitais de captação de recursos de apoiadores foram desenvolvidas.[…] Referência: Crowdfunding: eu apoio, tu apóias, nós apoiamos – o projeto “Força para a Força”.

No Brasil, a plataforma mais conhecida de crowdfunding é o Catarse, que usa o sistema de “ou tudo ou nada”: se o dinheiro total do projeto não for levantado até o deadline, as pessoas perdem tudo. Existem muitas críticas a fazer a esse sistema; uma delas é o estresse a que submete os proponentes de projetos, que, mesmo que se conseguirem juntar boa parte da grana, ficam sem nada. Isso pode não ser um problema para alguém que quer fazer um livro ou disco, por exemplo, afinal, a obra só começa a ser produzida depois de o dinheiro estar disponível. Mas para um atleta, que precisa se concentrar na performance e no treinamento para um campeonato, isso pode ser bem mais complicado. Outro caso problemático é quando se tenta levantar dinheiro para um evento, como um festival de música, por exemplo, que tem data pra acontecer.

Os problemas do crowdfunding, porém, derivam mais dos formatos e das plataformas existentes. A ideia, em si, é sensacional: fazer acontecer projetos que dificilmente seriam contemplados com patrocínios ou apoios de outra maneira. Tem muita coisa legal sendo feita por aí, mas que não é publicada/realizada porque não se encaixa no mercado mainstream, sempre mais conservador do que os grupos minoritários gostariam.

Crowdfunding e feminismo

Alguns anos atrás, antes de os projetos de crowdfunding começarem a rolar no Brasil, um amigo meu expressava dúvidas: ele achava que a coisa não iria dar certo por aqui, pois brasileir@s não têm o costume de doar em projetos alheios, colaborar, enfim, não é uma prioridade pra gente. Sempre preferiríamos tomar uma cerveja ou comprar um Big Mac do que doar uma graninha para uma instituição de caridade ou para um projeto bacana, dizia ele.

Pois bem. O tempo passou, o Catarse abriu, assim como outras plataformas de captação de recursos. Muitos projetos legais foram financiados dessa maneira, o que, de certa forma, prova que meu amigo estava errado. O Cidades para Pessoas foi um deles, assim como o Bike Anjo e o Mulheres no Volante – para ficar apenas em projetos em que contribuí pessoalmente. E fica a conclusão: podemos, sim, ser solidári@s.

E o que tem tudo isso a ver com feminismo? Bom, daí que eu acredito que o formato do crowdfunding é uma ótima maneira de financiar projetos de mulheres e de outros grupos marginalizados — ligados ou não ao feminismo. A ideia é simples, de fato: se cada uma ajuda um pouco, todas nos beneficiamos.

Sabemos que existem barreiras – concretas e simbólicas – para as mulheres realizarem coisas no mundo. É só olhar as listas de livros e discos lançados. Quantos foram feitos por mulheres? Um livro que saiu no final do ano passado, da Regina Dalcastagné, dá um panorama da coisa na literatura. Na pesquisa que ela fez com as quatro principais editoras do Brasil:

quase três quartos dos romances publicados (72,7%) foram escritos por homens; 93,9% dos autores são brancos; o local da narrativa é mesmo a metrópole em 82,6% dos casos; o contexto de 58,9% dos romances é a redemocratização, seguida da ditadura militar (21,7%). O homem branco é, na maioria das ocorrências, representado como artista ou jornalista, e os negros como bandidos ou contraventores; já as mulheres, como donas de casa ou prostitutas. Referência: Ensaio aborda os silêncios e as exclusões da literatura brasileira contemporânea

Ou seja: se você é mulher, dificilmente terá seu material publicado, lançado, visto no mundo. Primeiro porque talvez você nem chegue a considerar essa hipótese — lembram do Miss Representation e da ideia de que não podemos ser o que não podemos ver? Pois é. E segundo porque, mesmo que você decida fazer algo, outras barreiras simbólicas e invisíveis, tão invisíveis que muita gente vai negar que existem, farão com que seu livro/filme/disco/projeto esteja no fim da fila para sair no mundo.

Daí a importância de a gente formar essa grande corrente de ajuda mútua. Quebrando todos aqueles mitos bestas de que mulheres não se ajudam, não são solidárias e só querem mesmo pular no pescoço umas das outras.

Força para a Força

Ficou com vontade de colaborar pra algum projeto? Pois tem um agora bem bacana rolando. É o projeto da Marília Coutinho, pesquisadora, biológa, campeã de powerlifting com recordes quebrados e irmã d@ Laerte. Inclusive, nós já fizemos uma entrevista coletiva com ela.

Pois a Marília e um amigo estão com um projeto no Catarse para financiar a participação deles em um campeonato. Quem colabora tem direito a uma série de recompensas, entre elas um e-book super legal sobre o culto à forma em nossa sociedade, por exemplo.

Você pode colaborar com o projeto Força para a Força doando R$25 ou mais. Faltam 11 dias para acabar o prazo. Clique aqui e avise amigas e amigos sobre esse projeto bacana.

A princípio, pode parecer que um projeto de powerlifting não tem nada a ver com a gente, feministas, algumas não-atletas.

Mas tem, gente.

Porque: se é difícil para as mulheres publicarem livros, justo as mulheres, que teriam, segundo os evolucionistas e o senso comum, o cérebro mais voltado para a comunicação e as palavras e blá, imagine o patrocínio no esporte. Sempre, sempre é mais complicado pra uma mulher se destacar nessa área; atletas mulheres ganham menos, recebem menos apoio, aparecem menos na mídia, ocupam menos cargos de direção do que os colegas homens. Daí imaginem isso em um esporte tão tradicionalmente associado ao gênero masculino, como o levantamento de peso.

Não é fácil. Marília Coutinho comprou muitas brigas no esporte contra o machismo. Chegou a sofrer agressões em campeonatos que arbitrava por conta de ser mulher. E o que ela faz é de alto nível, quebrando todo tipo de paradigmas: os de gênero, os de que pessoas acima dos 50 anos não podem ter alto rendimento, o de que pessoas inteligentes e intelectuais não podem ser atletas. Pra ela, o powerlifting é mais que um esporte: é uma forma de arte e, acima de tudo, de sobrevivência.

A Marília fez uma série de vídeos falando da relação do esporte de força com o feminismo:

“Força para a Força” – força e feminismo, parte 1

“Força para a Força” – força e feminismo, parte 2

“Força para a Força” – força e feminismo, parte 3

Abaixo, uma entrevistinha com ela.

Três perguntas para Marília Coutinho

– Como surgiu a ideia de usar o crowdfunding para financiar sua participação no campeonato?

Quem me sugeriu utilizar o crowdfunding, em especial o Catarse, foi meu irmão, Laerte, pois meu sobrinho Rafael Coutinho teve sucesso em sua campanha para financiar o projeto de um livro. Como eu já argumentei profusamente, no meu entendimento o que eu faço é tão arte quanto qualquer arte. Além disso, não consigo ver, mesmo para quem não considera esporte arte, qual a diferença de mérito entre um livro (do próprio autor) e um campeonato. Então, achei que era uma boa, até porque o valor da campanha é modesto. Ponderei o tamanho da minha rede (número de seguidores da página do Facebook, do perfil do Facebook, LinkedIn e twitter, menos os overlaps), o impacto do meu website e fui à luta. Tem sido uma experiência muito dolorosa verificar que a admiração e votos de apoio que recebi ao longo da minha carreira são formalidades vazias, pois o apoio tem sido inexpressivo e deprimente.

– Algumas das recompensas são e-books de treinamento para atletas. Que recompensas o projeto oferece para pessoas que não praticam esportes?

Pois é, um dos problemas da plataforma é não dar visibilidade ao conteúdo de fato do projeto. Não é verdade que as recompensas sejam voltadas aos praticantes de esportes. Dois dos e-books que eu acho mais bacanas são especificamente relacionados à minha militância feminista: o e-book sobre formolatria, onde eu explico como o sistema combinado de marketing da indústria da beleza produziu uma “forma” desumanizada a qual, pela sua hegemonia, exerce um poder coercivo letal sobretudo sobre as mulheres; e o e-book sobre força feminina, onde eu reviso a literatura sobre o tema e desenvolvo a tese de que a alienação (a “desapropriação” operada na primeira infância) corporal feminina é a causa subjacente de inúmeros transtornos (não apenas no sentido médico, mas no sentido de motivo de dor e infelicidade) em suas vidas.

– Você acha que existe sexismo no esporte? É mais difícil, por exemplo, para uma mulher conseguir patrocínios e apoios?

Existe sexismo e violência discriminatória no esporte. Eu sugiro um exercício às leitoras: tente lembrar nomes de algumas dirigentes esportivas mulheres. Não conseguiu? Nem uma? Pois é. A pirâmide do poder organiza a opressão sexual, como em todos os segmentos da vida social. Mulheres atletas têm um item a mais para se submeter no sistema já ditatorial de governança desportiva: portar-se como mulher submissa. Quando eu fui dirigente, a quantidade de violência que eu sofri daria um pequeno livro de horrores. Ameaças de violência física abundantes, de morte uma ou duas e intimidação física, com resultados de fato (rompi um tendão), uma.

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E aí, curtiram o projeto da Marília? E a ideia de crowdfunding? Se souber de algum projeto bacana, feminista ou não, feito por mulheres ou outros grupos marginalizados, compartilhe nos comentários! Quem sabe assim a gente aumenta o tamanho dessa rede de apoio mútuo. 😉