Mulheres e Prisão

Texto de Camilla de Magalhães Gomes.

A mencionada seletividade pode ser formulada nos seguintes termos: todas as pessoas, de todos os estratos sociais, faixas etárias e gêneros, ou seja, todos nós (e não uma minoria perigosa da sociedade) praticamos frequentemente, fatos definidos como crimes, contravenções ou infrações administrativas e somos, por outro lado, vítimas dessas práticas (o que muda é a especificidade das condutas). Assim, tanto a criminalidade quanto a vitimação são majoritárias e ubíquas (todos nós somos criminosos e vítimas) percepção heurística para um senso comum acostumado a olhar a criminalidade como um problema externo (do outro, outsiders), a manter com ela uma relação de exterioridade e, portanto, a se autoimunizar. (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Revan, 2013. p. 138)

Recebi ontem o livro: “Pelas Mãos da Criminologia – o controle penal para além da (des)ilusão“, obra mais recente de Vera Regina Pereira de Andrade, uma das mais destacadas pesquisadoras da criminologia no Brasil.

Ainda que não tenha lido toda a obra até esse momento, uma rápida leitura no capítulo referente à criminologia feminista casou bem com o tema que havia desenhado para este texto de hoje. Nesse capítulo, Vera retoma alguns conceitos já presentes em outras de suas obras anteriores (como em A Ilusão de Segurança Jurídica e Sistema Máximo e Cidadania Mínima).

Quem são os presos no Brasil?

O primeiro ponto a ser observado refere-se à citação acima transcrita: o sistema penal, através de suas instâncias de controle social formal (forças policiais, ministério público, juízes e outros) e de suas instâncias de controle social informal (família, escola, religião, comunidade e, em destaque, a mídia), promove a seleção dos indivíduos e seus crimes.

Em uma sociedade em que (como todas as outras) TODOS praticam crimes e TODOS são vítimas de crimes, a seleção operada pelo sistema é o reflexo da própria estrutura social em que inserido. Uma sociedade patriarcal, racista e capitalista tem por clientes “habituais”, homens jovens, negros e pobres, aqueles que não cumpriram com seu papel na repartição das funções de seu gênero definidas para o atuar no mundo do capital, aquele de ser o homem “racional-ativo-forte-potente-guerreiro-viril-público-possuidor”. Assim, não é de se espantar que o maior número de presos no sistema carcerário brasileiro esteja entre aqueles acusados ou condenados pela prática de crimes patrimoniais ou de tráfico de drogas.

Esse perfil  do selecionado, entretanto, vem observando uma alteração: como mostra, por exemplo, a  Campanha Global (.pdf), patrocinada pela Open Society, na América Latina, que realizou levantamento sobre o número de mulheres presas preventivamente na região e o seu aumento. A prisão de mulheres está vinculada à pobreza: “A maioria foi acusada de delitos leves e se encontra em situação de miséria, marginalidade e sofrendo abusos. Há um importante crescimento de mulheres chefes de família, responsáveis pelos filhos e, eventualmente, irmãos ou irmãs e pais. Elas dificilmente podem pagar um advogado ou a fiança e, portanto, correm maior risco de permanecer mais tempo em prisão preventiva”.

São mais de meio milhão de mulheres presas, número que duplicou nos últimos cinco anos. O Brasil observou um aumento de três vezes nesse número: de 11.000 para mais de 35.000. Os números aumentam, mas o sistema não se prepara para recebê-las.

Esse aumento tem algumas razões a serem destacadas. Como aponta Vera:

Na medida em que as mulheres passam a exercer papeis masculinos na esfera pública, sobretudo no mercado informal de trabalho,  elas (sobretudo mulheres adultas jovens pobres e de cor) tornaram-se mais vulneráveis à secular criminalização seletiva do controle penal, e é precisamente este o processo que está a suceder nesta era do capitalismo patriarcal globalizado sob a ideologia neoliberal. A criminalização patrimonial feminina (pelas mesmas condutas que os (seus) homens são  criminalizados (furto, roubo, estelionato e, nuclearmente, ao que tudo indica, tráfico de drogas)  está elevando progressivamente a representatividade das mulheres (e, com elas, partos e crianças) na clientela prisional, o que certamente tem implicações para a identidade androcêntrica do sistema penal. ((ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Revan, 2013, p. 145)

Presídio Feminino. Foto de Sebastião Bisneto/Agência A Tarde.
Presídio Feminino. Foto de Sebastião Bisneto/Agência A Tarde.

Quem são as presidiárias brasileiras?

O perfil da mulher presa não foge à regra do perfil geral do encarcerado em uma sociedade que, como dito, é patriarcal, racista e capitalista: são mulheres jovens, pobres e negras. Se em décadas anteriores,  as mulheres selecionadas pelo sistema eram aquelas que não atendiam à função designada ao seu gênero (ou seja, aquelas que cometiam abortos ou exerciam atividades ligadas à prostituição, descumprindo com seu papel de mãe e reprodutora, desviando-se da conduta sexual dita “correta”), os casos que começam a se acumular revelam que a seleção promovida acompanha aquela mesma que recai sobre os homens: são selecionadas, cada vez mais, mulheres envolvidas na prática de crimes de furto, roubo, estelionato e tráfico de drogas.

Uma criminalidade patrimonial, no lugar daquela criminalidade “matrimonial”. Isso continua a ter fundamento naquela já repetida estrutura social: patriarcal, capitalista a racista. A mulher, negra e pobre, em condições de exclusão social ou exclusão do mercado de trabalho, torna-se mais vulnerável ao sistema penal que, em sua função real, seleciona aqueles que não atendem às necessidades do capital.

Em 2005, havia 9 mil mulheres presas em todo o Brasil. Em 2011, elas já eram 35 mil, um crescimento de quase quatro vezes em apenas seis anos. De acordo com a CPI do Sistema Carcerário, elas têm entre 20 e 35 anos, são chefes de família, pouco estudo e pelo menos dois filhos menores de idade. De acordo com o InfoPen, 85% delas cometeram crimes relacionados a entorpecentes ou crimes contra o patrimônio, sem violência. “Em vez de dar penas alternativas, o Estado resolveu prender essas mulheres”, diz Lucia Nader, diretora da Conectas. “Mas não há estrutura para isso no país. Há 508 unidades com mulheres presas, mas apenas 58 são exclusivamente femininas. Em todas as outras há homens e mulheres presos.”  Referência: Um ginecologista para nove mil mulheres: um exemplo de como está a situação nos presídios femininos brasileiros, matéria da Revista Marie Claire.

Não fosse isso panorama grave o suficiente, há mais. O sistema penal ainda é bastante androcêntrico: criado por homens, pensado por homens e para homens. Isso tem reflexos nas suas diversas esferas: na criação da legislação, na sua aplicação judiciária e na sua execução. É esse último ponto que tem merecido destaque em diversas notícias, pesquisas e campanhas brasileiras.

A realidade das prisões femininas

A pesquisa acima referida, realizada em 2012, mostra que a realidade nas penitenciárias femininas brasileiras (e latinoamericanas) é grave. Acompanham, certamente, a mesma situação de descaso, superlotação e desrespeito aos direitos humanos que observamos em todo o sistema penitenciário, mas há aspectos que dizem respeito exclusivamente à reclusão da mulher.

“Uma jovem grávida de 3 meses foi presa por micro tráfico de entorpecentes. Embora a lei disponha que a prisão provisória para gestantes a partir do sétimo mês possa ser domiciliar, a jovem, que está no sétimo mês de gestação, ainda está presa à espera do julgamento, em más condições de higiene e sem alimentação adequada, nem atendimento médico. Caso venha a dar à luz na prisão, pode ser que o hospital só a atenda se estiver algemada” . Referência: Boletim Informativo Conectas Brasil.

“MLPR, 34 anos, passou 4 anos em prisão preventiva. Durante este tempo, as autoridades penitenciárias estipularam que ela só poderia exercer o seu direito à visita conjugal se aceitasse tomar uma injeção anticoncepcional. A injeção não era necessária, pois ela já havia feito a esterilização. Não houve nenhum exame médico anterior ou acompanhamento posterior, embora ela tenha se queixado dos efeitos colaterais desta injeção desnecessária. Esta prática penitenciária é uma violação às normas nacionais e internacionais.” Referência: ASILEGAL, México.

A realidade é a de mulheres afastadas de suas famílias (as visitas em penitenciárias femininas são em número significativamente menor que aquele observado nas masculinas) e que, não raro, observam quadros de depressão. Mulheres expostas à violência e ao assédio sexual que vivenciam a gestação, o parto e a maternidade na prisão. Em alguns casos, perdem a custódia dos filhos e sofrem violações dos seus direitos reprodutivos. Isso sem contar a gravidade da situação de mulheres trans* presas e submetidas ao encarceramento em estabelecimentos masculinos, em completa violação de seus direitos. 

Miolo de pão como absorvente

Outra pesquisa realizada pela Conectas, desde 2012, e que voltou a ser notícia em janeiro desse ano, revelou que muitas prisões não tem ou destinam orçamentos irrisórios para a garantia de condições de higiene das mulheres presas.

Há anos, por exemplo, sabe-se que mulheres presas que não tem familiares que possam disponibilizar o produto, passam o mês acumulando miolo de pão para improvisar absorventes durante o período menstrual. O governo federal confirmou tal prática em relatório interministerial, publicado em 2007, e a descreveu como “um frontal desrespeito ao preceituado na Lei de Execução Penal”. Cinco anos depois, relatos similares e dados alarmantes foram apresentados em Audiência Pública realizada ontem (22/11) em São Paulo pela Defensoria Pública do Estado, por meio do Núcleo Especializado de Situação Carcerária. Referência: Faltam itens de higiene nas prisões brasileiras.

A audiência pública referida revelou o que já se sabia: em diversos presídios paulistas (Centros de Ressocialização de Rio Claro Feminino, Itapetininga Feminino e Sumaré Feminino) não havia nem registro de compra de absorventes. Em outros, não era fornecida roupa íntima para as presas, assim como outros ítens básicos como toalhas e cobertores. 

“Infelizmente, faltam produtos básicos e materiais de higiene nas prisões de São Paulo. A situação é ainda mais drástica no caso das mulheres, pois as prisões são locais pensados por homens, para abrigar homens”, diz Lucia Nader, diretora executiva da Conectas. Muitas mulheres presas dependem, assim, de doações feitas pela igreja ou ajuda de familiares, que, muitas vezes, acabam assumindo uma parcela de gastos muito maior que a do Estado nos custos com assistência material às pessoas encarceradas.

Ainda mais grave o fato de que, considerando que 66% das mulheres presas no país assim estão por crimes que se relacionam com sua própria condição de vulnerabilidade social (crimes patrimoniais e de tráfico), é de se perceber que, na ausência da prestação dessa espécie de cuidado pelo Estado enquanto estejam encarceradas, essas mulheres não tem quem lhes garanta qualquer apoio. 

Um ginecologista para nove mil presas

Em todo o sistema penitenciário feminino brasileiro, há apenas 16 médicos ginecologistas, de acordo com dados do Infopen. 16 médicos ginecologistas para atender todas aquelas milhares de mulheres. 

Um único ginecologista para atender nove mil presas. É essa a situação de saúde das mulheres encarceradas nos presídios femininos em São Paulo. Se o ginecologista trabalhasse os 365 dias (nada de feriados, fins de semana, falta por doença ou férias), ainda assim ele teria que atender 25 mulheres por dia para garantir que cada uma tivesse ao menos uma consulta por ano, como recomenda o Ministério da Saúde. E nada de retornos, exames, partos, casos emergenciais, etc. 

A corrupção e o descaso fazem vítimas fatais. Uma delas foi a sul-africana Ndilekeni Nlehma. Apesar de ter cometido um delito leve e de ter direito ao regime semi-aberto, Ndilekeni foi mantida trancada por mais de um ano. Ela sofria de asma, comprovadamente, mas enquanto esteve presa na Penitenciária Feminina da Capital (PFC) nunca recebeu nenhum dos remédios que deveria tomar. Na madrugada do dia 26 de agosto, Ndilekeni se sentiu mal. Tinha dificuldade de respirar. Não havia ambulância para levá-la ao hospital naquele momento. Às três da manhã, suas companheiras de cela a colocaram deitada numa mesa e rezaram. Às seis, ela morreu. Um relatório da equipe do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, que atua em presídios em parceria com o Ministério Público, indica que a morte se deveu à “inexistência de equipe de saúde em plantão na PFC e negligência da equipe de segurança por não encaminhar a presa ao pronto socorro com a urgência necessária”. Referência: informação do Infopen, publicada na Revista Marie Claire e no site do Conectas.

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Livro: Pelas mãos da criminologia – O controle penal para além da (des)ilusão de Vera Regina Pereira de Andrade.

Diante desse quadro trágico, vale de novo citar Vera Andrade:“Todos nós somos criminosos, vítimas, sistemas criminais e, portanto, o problema também é nosso”.  (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Revan, 2013. p. 138) A solução não está em novas leis, em mais rigor no direito penal ou em um novo Código Penal, como se pretende com o Projeto Sarney. A solução está na autorresponsabilização, ou na corresponsabilização, como diz a autora: somos todos responsáveis, uma vez que somos todos criminosos e vítimas.

E, principalmente aqui, somos todos sistema penal, já que somos parte dessa estrutura social patriarcal, capitalista e racista que seleciona os seus “criminosos” a partir desses seus critérios fundantes. Mudanças nesse panorama do sistema dependerão sempre de mudanças culturais e sociais que atinjam de algum modo essa estrutura e isso depende que cada um se reconheça e se autorresponsabilize por fazer parte dela.

Campanha: “Estou presa, continuo mulher”

A Pastoral Carcerária, nesse caminho, realiza esse mês a campanha: Estou presa, continuo mulher de arrecadação de roupas íntimas e absorventes para mulheres em situação de prisão.

Para doar em dinheiro: será feita arrecadação em dinheiro por meio do ITTC, instituição integrante do GET Mulheres Encarceradas:

Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC)

Banco Santander: Agência 3373, C/c 13000133-9

Para entregar doações em São Paulo:  devem ser feitas até o dia 5 de março, de segunda a sexta-feira, 09h-18h. Nos seguintes postos de doação:

– Associação Juízes para a Democracia (AJD)
Rua Maria Paula, 36, 11º andar, Centro (fone: (11) 3242-80-18)

– Pastoral Carcerária de São Paulo
Rua da Consolação, 21, 8º andar (fone: (11) 3151-4272)

[+] Sobre mulheres encarceradas por pequenos furtos, recomendo o documentário: Bagatela.