Mulheres e a (re)construção da democracia

Texto de Barbara Lopes. semana_8_marco

A segunda onda do feminismo demorou a ver as praias da América Latina. Enquanto o movimento ganhava uma nova vitalidade nos Estados Unidos e na Europa, aqui embaixo países caiam, um após o outro, sob ditaduras militares. Nesse contexto de ataque às liberdades básicas de reunião, manifestação e expressão, muitas mulheres se engajaram na luta contra a ditadura em organizações  de esquerda.

Ato do Movimento do Custo de Vida, Praça da Sé, São Paulo – 1978. Arquivo do MST.
Ato do Movimento do Custo de Vida, Praça da Sé, São Paulo – 1978. Arquivo do MST.

No Brasil, quando a ditadura começou a perder fôlego – devido às denúncias de violações dos direitos humanos, mas também porque o crescimento econômico do milagre não conseguiu se sustentar – movimentos de mulheres tiveram papel central em abrir caminho para a redemocratização. Foi assim com o Movimento Feminino pela Anistia e com os Clubes de Mães.

Os clubes de mães ganharam visibilidade em 1973, quando a imprensa publicou a Carta das Mães de Periferia de São Paulo, que denunciava a alta nos preços dos alimentos e as dificuldades de dar conta das necessidades básicas da família com o apertado orçamento doméstico. As queixas ecoaram nas eleições legislativas do ano seguinte, quando o MDB, oposição ao regime militar, elegeu 48% da Câmara dos Deputados, 59% do Senado e diversas prefeituras.

Em 1975, Therezinha Zerbini convocou mães, esposas e irmãs de presos e exilado a lutar pela anistia. Nesse caso, também era forte a ligação com a Igreja Católica. O movimento estabeleceu núcleos em oito estados brasileiros, estabelecendo as bases para o Comitê Brasileiro pela Anistia.

Em ambos os casos, tratam-se de organizações de mulheres que não tratam diretamente da desigualdade de gênero e cujos discursos muitas vezes reforçam esses papéis. O manifesto do Movimento Feminino pela Anistia dizia:

Nós, mulheres brasileiras, assumimos nossas responsabilidades de cidadãs no quadro político nacional. Através da história provamos o espírito solidário da mulher, fortalecendo aspirações de amor e justiça. Eis porque nós nos antepomos aos destinos da nação que só cumprirá sua finalidade de paz se for concedida anistia ampla e geral a todos aqueles que foram atingidos pelos atos de exceção. 

Conclamamos todas as mulheres no sentido de se unirem a esse movimento, procurando o apoio de todos que se identifiquem com a idéia da necessidade de anistia, tendo em vista um  dos objetivos nacionais: a união da nação.

De outro lado, dentro de organizações de esquerda e dos partidos, a luta por igualdade entre homens e mulheres era vista como secundária ou divisionista. Era a falsa dicotomia entre a luta geral – de classe, por justiça social – e a luta “específica” das mulheres, contra a violência, por creches e por direitos reprodutivos.

Portanto, com o processo de redemocratização, quando surge um grande número de grupos feministas no Brasil, há o contraste com essas duas vertentes: tanto com movimentos de mulheres que não reivindicavam o feminismo, como com as organizações políticas tradicionais. Mas, além do contraste, há também uma grande proximidade. Muitas militantes, mesmo tendo sido despertadas para o feminismo por causa do sexismo na esquerda, mantiveram duas frentes de atuação, como feministas e como membros de um partido, sindicato, etc. De forma similar, ainda que não questionassem diretamente os papéis de gênero, os grupos de mães organizavam mulheres nas periferias, mostravam sua força política e traziam à tona questões fundamentais para o feminismo.

O movimento de luta por creches foi, então, um grande ponto de síntese. Era uma reivindicação popular, que não entrava em conflito com a Igreja (como na questão dos direitos reprodutivos), que expunha a falta de serviços públicos nas periferias e a necessidade de redividir o trabalho doméstico e de cuidados, inclusive com o Estado. Em 1979, diversos grupos de mulheres, declaradamente feministas ou não, fundaram o Movimento de Luta por Creches, que em seu manifesto afirmava:

Somos trabalhadoras um pouco diferentes (…) somos diferentes, em primeiro lugar, porque não nos reconhecem como trabalhadoras quando trabalhamos em casa 24 horas por dia para criar condições para todos descansarem e trabalharem. Não reconhecem, mas nosso trabalho dá mais lucro que vai direto para o bolso do patrão.

Somos diferentes porque, quando trabalhamos também fora, acumulamos os dois serviços – em casa e na fábrica. E sempre nos pagam menos pelo trabalho que fazemos. Trabalhamos mais e ganhamos menos (…) A mulher é que mais sente o problema. Isto todo mundo vê. Se bem que os filhos, como não são só filhos da mãe, interessam a toda a sociedade. A sociedade é que deve criar condições para que esses trabalhadores de amanhã possam se desenvolver em boas condições de saúde e de formação (…) Creches são nosso direito.

Bibliografia: Sonia Alvarez – “Politizando as relações de gênero e engendrando a democracia”. Tradução: Alana Madureira Barros.