Emancipação feminina na novela Lado a Lado

Texto de Srta. Bia.semana_8_marco

A emancipação feminina já foi tema de filmes, peças de teatro, exposições culturais e diversas outras manifestações artísticas. Porém, apenas em 2012, uma telenovela retratou parte da luta histórica das mulheres brasileiras por liberdade e emancipação no início do século XX. E mais que isso, mostrou as diferenças que mulheres brancas e negras enfrentaram.

Essa semana, serão exibidos os cinco últimos capítulos da novela ‘Lado a Lado’, que desde setembro de 2012 vai ao ar de segunda a sábado a partir de 18:15h na Rede Globo. É até mesmo simbólico que seu último capítulo seja exibido no dia 08 de março. Por mais que telenovelas sejam vistas por algumas pessoas como “lixo cultural”, são assistidas por milhares de pessoas e exportadas para outros países, como produto cultural genuinamente brasileiro. As novelas reforçam estereótipos da imagem do homem, da mulher, d@s negr@s e de outros grupos sociais na mídia, portanto, acabam sendo responsáveis pelo processo de construção/reconstrução de identidades sociais.

A telenovela brasileira, considerada como produto da indústria cultural mais divulgado no exterior, sendo exibida em um grande número de países da Europa, Ásia e América, é também, na avaliação de estudiosos da comunicação e de outros campos do saber, uma forma de representaçao que retrata nossas características socioculturais. Herdeira do folhetim do século XIX e da radionovela, tem se caracterizado por buscar, cada vez mais, a aproximação com temas sociais e políticos nacionais. Sem deixar de lado o conteúdo melodramático que garante o fascínio e a adesão do público aos heróis e heroínas e às tramas românticas, procura mesclar nessas tramas questões sociais e temas polêmicos para os quais a sociedade se volta na atualidade. Assim a ficção se constrói num diálogo e numa interação constantes com a realidade. Referência: Prefácio do livro ‘A negação do Brasil – o negro na telenovela brasileira‘ de Joel Zito Araújo, pg. 13.

Provavelmente, o fator mais positivo de ‘Lado a Lado’ seja seu texto que não esconde em nenhum momento o racismo e que mostrou a participação dos negros, por meio do personagem, Zé Maria, em diversos eventos históricos como a Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata. Relegados geralmente a papéis menores e de serviçais, em ‘Lado a Lado’ o elenco negro é grande, com nove atores em papéis de destaque e conta tanto com vilôes, como mocinhos e mocinhas.

A novela se passa no Rio de Janeiro do início do século XX, onde a cidade tentava se transformar em uma nova Paris, abrindo avenidas e removendo pessoas pobres dos cortiços, dando origem à primeira favela carioca, no Morro da Providência, no centro da cidade. O samba-enredo “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós” que toca na abertura da novela já marca a diferença da trama. O racismo e a luta do povo negro são temas permanentes na novela, seja na trama sobre a presença do negro no futebol ou o combate contra a intolerância religiosa, mas nesse texto vou me concentrar nas duas personagens principais.

Cena da novela 'Lado a Lado' (2012) da Rede Globo. À esquerda, Laura (interpretada por Marjorie Estiano. À direita, Isabel (interpretada por Camila Pitanga).
Cena da novela ‘Lado a Lado’ (2012) da Rede Globo. À esquerda, Laura (interpretada por Marjorie Estiano). À direita, Isabel (interpretada por Camila Pitanga).

‘Lado a Lado’ acompanha a história e a amizade de duas mulheres. Laura, jovem branca, nascida na elite, filha de ex-proprietários de terra e escravos. E Isabel, jovem negra, filha de ex-escravos, que no início da novela trabalha como empregada doméstica de uma senhora francesa. Isabel e Laura se conhecem na igreja, no dia de seus respectivos casamentos. Isabel está lá para casar com o homem que ama, Laura está casando sem conhecer o noivo, porque as convenções sociais demandam. A partir desse encontro nasce uma amizade que enfrentará várias barreiras.

Laura deseja ser independente, trabalhar e mudar o destino das outras mulheres. Também anseia por uma sociedade mais justa e igualitária. Apesar do voto feminino não ser pauta na novela, Laura parece inspirada em sufragistas e feministas pioneiras brasileiras como Nísia Floresta. Isabel deseja ver seu povo respeitado, pretende ir além do lugar que a sociedade reserva para a mulher negra e parece ter parte de sua inspiração na dançarina americana Josephine Baker, mas com expressão brasileira, já que suas cenas de dança foram coreografadas por Zebrinha, bailarino e coreógrafo do Bando de Teatro Olodum.

A lista de absurdos que essas duas mulheres cometeram é imensa. Isabel fez sexo fora do casamento, com um homem branco e rico do qual engravidou e decidiu ser mãe solteira. Laura é uma mulher divorciada que não conseguia emprego e sofreu duas tentativas de violência sexual (uma por parte do cunhado e outra por parte de um senador) porque quem não tem marido, não merece respeito. Após uma temporada na França, Isabel retorna rica e famosa, vira dona de teatro e junto com Laura realizam um grande sonho: abrem uma escola no Morro da Providência. Laura escreve uma matéria sobre a apresentação de dança de Isabel para o jornal local com pseudônimo masculino, recebe mais encomendas de matérias e depois de se revelar consegue autorização para publicar com seu próprio nome.

Essa lista é apenas um resumo curto da trajetória das duas personagens, que enfrentaram a tudo e a todos com muita autoestima e desejo por liberdade e justiça. Nem cheguei a citar os dramas pessoais de cada uma, que também passa pelo constante questionamento da liberdade sexual de ambas. São duas mulheres impulsionadas por um desejo de redefinição da mulher na sociedade, que buscam montar seus pilares na educação (por meio da escola no morro e a desaprovação que Laura faz dos métodos de ensino da época), nas artes (Isabel é dançarina, dona de teatro e apresenta o cinematógrafo) e na comunicação (Laura torna-se jornalista, assim como o marido. E elas, num determinado momento da trama. se comunicam via anúncio no jornal).

Foi uma grande alegria acompanhar essa novela por seis meses. Rir e sofrer com duas personagens tão humanas, mulheres que assumem suas decisões, mesmo que em algum momento as questionem, mas sempre tentando acertar, sabendo que seus caminhos e escolhas não são simples. A condição a que estava submetida a mulher brasileira no início do século XX era de repressão e submissão, traço que aproximava ricas e pobres, negras e brancas. Porém, cada uma delas segue caminhos distintos em sua luta por visibilidade e respeito.

Um exemplo. Há uma cena (pode ser vista aqui) em que Laura leva seu texto a um jornal para ver se aceitam publicá-lo. O editor nem lê o texto e avisa que publicar um texto sério, escrito por uma mulher, pode abalar a credibilidade do periódico e oferece a Laura uma revista feminina com várias receitas. A resposta é curta: – Eu não vim em busca de receitas. Eu nem cozinho. Eu escrevo! Para Isabel, a comida faz parte da identidade de seu povo, como mostra na cena em que apresenta o morro e sua comunidade para a francesa Dorleac (a cena pode ser vista aqui).

Outro aspecto importante para compreender a dinâmica do afeto como reforço da assimetria nas relações raciais, principalmente no Brasil, é a postura de Laura que, mesmo sabendo o quanto a mãe é peçonhenta, tenta relativizar o processo preparatório do veneno junto à Isabel, principal alvo da crueldade materna. Laura ouve as justificativas e explicações da mãe e surpreendentemente, tomada por amor filial, dá crédito a elas e tenta amainar o coração da amiga em relação à genitora. Isabel não aceita sequer ouvir, não tem paciência (como eu), mas Laura prossegue, é a representação da mulher branca não-racista que não compreende a ignomínia do racismo e por isso rejeita o fato de que uma igual, a mãe, a quem ela percebe como um ser humano ruim, mas humano, possa ser tão racista. E, se Laura continuar assim, com a visão ingenuamente obliterada pelo afeto, não caminhará a humanidade, pois haverá, sempre, o carinho do escravizador pelo escravizado. Referência: Racismo no Brasil e afetos correlatos por Cidinha da Silva.

Além de Isabel e Laura há: Gilda, Celinha, Diva Celeste, Sandra, Teresa, Fátima, Jeanette Dorleac e Tia Jurema. Diferentes mulheres que representam diferentes dramas. Uma é órfã e trabalha em um bar, outra é humilhada pelas irmãs por não ter se casado, outra é atriz, outra é mãe solteira que esconde o segredo da família, outra é a mãe que deseja a independência da filha, outra é médica que estuda a capoeira, outra é uma francesa que subverte costumes e outra é fundamental para a disseminação e continuidade da cultura negra. Foi uma novela muito rica em personagens femininas fortes e que mudaram seus próprios destinos. Espero que o tema da emancipação feminina ainda renda boas histórias, porque se até hoje as mulheres são culpadas pela violência que sofrem, temos ainda mudanças sociais importantes para colocar em prática.

[+] Entrevista com a autora Claudia Lage: ‘A novela é feminista. Quem teve que se ajustar, foi o homem’.

[+] Lado a lado, uma novela e suas mulheres livres e biscates por Iara Ávila.

[+] Estupro em Lado a Lado: aula de feminismo e boa dramaturgia por Charô.