Esse mês é um tempo de inúmeras atividades relativas a mulher, fico muito feliz em ver que a cada ano há mais espaços e pessoas feministas tomando frente aos oito de março, mas ainda nada feliz com as inúmeras promoções mercadológicas que insistem em nos padronizar em um único comportamento, beleza e corpo, especialmente nessa época. Oh, a contradição! Somos plurais. Porém não tão plurais assim, porque acredito no fato de que enquanto existirem mulheres invisibilizadas nos nossos discursos e outras pessoas privilegiadas e, que essas mulheres sejam violentadas, há muito trabalho e falta pluralidade. Força e solidariedade é o que nos move.
Nesse trabalho devemos reconhecer o ausente, ou quase ausente, debate na grande maioria dos espaços que participamos acerca da cultura surda, e, em se tratando de feminismo, da invisibilidade da mulher surda. Até nos espaços em que há o comprometimento de nomear aquilo que não é nomeado, ou visibilizar aquela que está invisível. Já temos parte e estamos aprendendo muito acerca da mulher negra, da mulher trans*, da mulher lésbica, da mulher pobre, da mulher presa. Só que, eu ouso provocar: quando debateremos a invisibilidade da mulher surda?
Acredito que o passo inicial para alavancar esse debate é reconhecer que vivemos em um ambiente eminentemente privilegiado e opressor que é o ambiente ouvinte. Perceber que em nossos espaços de militância não garantimos de fato a participação da população surda. Não debatemos um feminismo surdo, como hoje já se apresenta um feminismo negro, um transfeminismo, um feminismo socialista. O feminismo ainda é um discurso oralizado e, portanto, privilegiado às pessoas ouvintes e marginalizado às pessoas surdas. A convivência inclusiva e plural é o bilinguismo!

A Libras – Lingua Brasileira de Sinais não se trata de uma tradução do português, muito menos de uma sequencia de sinais que traduzem cada letra do alfabeto oralizado, é uma língua autônoma, com estrutura linguística própria, que se manifesta diferentemente em cada região e país. Há no Uruguai a LSU – Lengua de Señas Uruguaya, nos Estados Unidos há a American Sign Language, enfim, cada país reconhece ou vem reconhecendo as línguas sinalizadas. Nos EUA, existe inclusive uma universidade ()dedicada à cultura surda, a Universidade Gallaudet. Na UFPR (Universidade Federal do Paraná) e a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) existem os cursos de Letras Libras.
Como somos produzidos pela linguagem, a lingua de sinais também é cultura, e nesse sentido também há poesia.
A mulher surda é oprimida de forma muito perversa, pois sequer os parcos meios que temos de denúncia não possuem estrutura mínima para o atendimento das pessoas surdas. Não existem suficientemente advogadas e advogados bilingues ou surdos para o atendimento da demanda. O próprio conteúdo da lei Maria da Penha não está acessível em libras, seja na sua formalidade “a letra da lei”, seja em políticas públicas que promovam o seu conteúdo em língua de sinais.
Se ainda existe uma cultura da impunidade ela é muito grave quando a vítima é surda, pois esta não tem espaço para denunciar nem mesmo em grupos feministas, já que a cultura de língua de sinais é quase ausente. O perfil da pessoa que agride em geral é ouvinte, que, ciente do seu privilégio, o utiliza a seu favor, na certeza da impunidade, já que dificilmente a mulher surda terá sua denúncia atendida. Enfim, basta olharmos ao nosso redor e perceber como há um privilégio eloquente do mundo ouvinte que não garante direitos e visibilidade à mulher surda!
Para termos compreensão da profundidade do privilégio e opressão, por exemplo, no Brasil, destaco que a Libras só foi reconhecida pelo Estado como língua oficial em 2002, através da Lei 10.436. Lamentavelmente é comum encontrarmos relatos de pessoas surdas que foram obrigadas a se oralizarem, na medida em que aos serem “inseridas” no processo educacional tinham suas mãos amarradas, ou apanhavam nas mãos como método obrigatório de oralização.

Na cultura surda, cada pessoa possui um sinal, que é a expressão visual e motora pessoal de cada um de nós. Quando estamos inseridos na cultura surda, para além do nome, possuímos um sinal próprio, essa é marca que nos individualiza e nos caracteriza na comunidade surda. É por isso que lancei a pergunta do post, para que nós, mulheres ouvintes, nos apropriemos da cultura surda para a construção de um mundo plural, surdo e ouvinte. Vamos à luta mulheres surdas e ouvintes, juntas, por um mundo bilingue em que todas as mulheres sejam livres e respeitadas!
Esse post é uma mínima contribuição ao enfrentamento do privilégio ouvinte e a construção de um mundo inclusivo cuja comunicação ultrapasse a barreira do som e atue na amplidão da comunicação sinalizada. Um viva às mulheres surdas!
Ps.1: Tive contato com a cultura surda em razão da militância partidária, na minha cidade existe um núcleo de acessibilidade, que enfrenta mas ainda vive as dificuldades de garantir um espaço plural e bilingue. Tivemos uma candidata surda, a Christiane. E foi muito bacana ter uma versão do jingle da minha campanha em libras, eu ainda sinalizo muito mal e no vídeo é possivel perceber, mas estou me esforçando.
Ps.2: A minha felicidade foi ter recentemente ido à João Pessoa, sou de Curitiba com um sotaque bem curitibano — que fala porrrta e leitE quentE — na orla conheci dois meninos surdos, conversamos em libras e pela minha sinalização me perguntaram se eu era do sul, fiquei faceira ao ser surpreendida com meu “sotaque” em libras e sinalizei que era de Curitiba.
Ps.3: Esse post é dedicado a minha querida amiga Rafaela, surda e feminista. Agradeço imensamente você estar na minha vida e ter a oportunidade de aprender tanto com você, seu amor, ternura e gratidão. Dedico a Sueli e ao Jonatas, ouvintes em quem eu me espelho muito, com a fé de ser possível construir um mundo bilingue de pluralidade e respeito com ausência de privilégios e opressões ouvintes.