Texto de Ana Rusche.
– para Iara Paiva e Luciana Nepomuceno
“Mas, Ana, não é um negócio que só tem homem?”. Foi a pergunta que ouvi dum amigo querido quando contei, toda empolgada, que estava matriculada para o curso sobre fazer cerveja em casa. No ar, aquele tonzinho de troça. Bom, nós dois sabemos que não é nenhuma rampa de temperatura que vai me desanimar. Nem uma turma de trinta pessoas, com apenas três mulheres, sendo eu a única desacompanhada. Aliás, gostei muito do curso.
Mas a pergunta é boa. Aí aproveitando que hoje a Lei da Pureza da Cerveja faz 497 anos, achei que a efeméride podia servir de desculpinha pra escrever um texto às mulheres que gostam de cerveja. No melhor espírito das impuras e vadias, você sabe como é.

Pensando ainda na parte lamentável que envolve o consumo de álcool e sexismo – na propaganda-de-mulher-pelada, no aumento do alcoolismo entre mulheres, na cultura que legitima o agressor a se ‘aproveitar’ da coleguinha embriagada, na desculpa fraca do “bebi e perdi a cabeça” sobre as agressões domésticas e paremos por aqui – levantei então algumas bisbilhotices sobre o tema, com a ideia de propagar a filosofia de beber menos e melhor. Enfim, se quiser puxar a cadeira, pode pedir: desce uma, por favor.
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Coisa de mulher?
Embarcando num papo feminista delirante de boteco, afirmo: cerveja é coisa de mulher. Definitivamente. Devem ser uns 3 mil anos de civilização produzindo cerveja contra os últimos oito séculos, nas minhas contas ruins e leituras esparsas. Os sumérios mesmo já tinham uma deusa da cerveja: Ninkasi, há uns 4 mil anos. Ninkasi, dai-me paciência.
Do alto destas pirâmides, 40 séculos vos contemplam
A frase é do Napoleão, mas podia servir para aquelas tentativas de frase de efeito horríveis que usamos pra provar certas verdades numa mesa. Olhe, desde o Egito Antigo, as mulheres produziam cerveja. E era duro para as escravas e criadas que preparavam os grãos e executavam todas as etapas de preparo. Glamour só para as que possuíam canudos e jarros elegantes.
Cerveja, desde então, era bebida popular. Durante a construção das pirâmides, havia trabalhadores que eram remunerados com cerveja três vezes ao dia. Se você acha estranho, saiba que muitos dos trabalhadores ingleses no século XVIII também sobreviviam à fome com um meio quilo de pão e 1l a 1,5l de cerveja por dia.

(Sobre a África, conto ainda que, até hoje são produzidas cervejas tradicionais africanas, como a xhosa Umqombothi, feita de milho e sorgo malteados. Há várias marcas regionais, como a etíope Harar Beer, com inscrição em amárico. Nos rótulos, é possível também ler marcas da colonização: a cerveja moçambicana 2M faz referência à abreviatura do nome do conde Mac-Mahon, percepções que acentuam aquele travo amargo no final do gole).
Cervejeiras e taberneiras inquestionáveis
Na Idade Média, as mulheres europeias frequentavam tabernas e eram proprietárias destes estabelecimentos. E, no dote, eram incluídos os principais instrumentos para fazer cerveja. Nem preciso te contar o que se bebia na despedida de solteiro da época… Enfim, quem assa pão, brassa cerveja – palavras tão próximas em alguns idiomas. Até existia a figura da alewife na Inglaterra (“esposa da cerveja” na minha tradução tosca). Contudo, a vida não era fácil para as cervejeiras – a ilustração aí embaixo mostra uma criada carregando uma enormidade de barris enquanto a outra grita para levar os barris até a cervejaria e enche-los novamente.

A cerveja derramada
Em cada região europeia, a perda da cultura da brassagem caseira ou a produção de pequeno porte, mantida por mulheres, ocorreu de modo diferente. Por exemplo, na Inglaterra, as mulheres começaram a perder o monopólio já no século XIII – primeiro, foi proibida a venda de cerveja pelas taberneiras em alguns períodos e a compra de certos cereais em grandes quantidades. Depois, começaram a falar mal das cervejeiras, ah, mulheres difíceis. Mais tarde, com o advento da revolução industrial e a racionalização da produção, a brassagem deixou definitivamente as cozinhas… o próximo passo foi usar a estratégica propaganda-de-mulher-pelada e chamar de devassa, bem, você já conhece a história.
Fadas
Há um boato que a história da varinha mágica tem a ver com a varinha das cervejeiras. A vara, utilizada para mexer o tanque de fermentação, uma vez seca, levava as leveduras de um tanque para outro. Como nesta época ninguém tinha ainda espiado pelo buraco do microscópio, achavam que era pura mágica o início da fermentação.
As cristãs
Foi uma santa quem descobriu o lúpulo! Sim, a Santa Hildegarda de Bingen, no século XI, importante erudita e estudiosa, monja beneditina, pesquisou este conservante natural que confere à cerveja o gosto amargo característico que conhecemos hoje. Viveu até os 81 anos, uma façanha para a época. As boas línguas dizem que foi pelo consumo de cerveja.
E não eram somente as católicas que produziam cerveja. A esposa de Martinho Lutero, Katharina von Bora, cervejeira de profissão, tinha a fama de produzir uma cerveja deliciosa.

Até hoje, muitas das ordens produzem a própria bebida. Separei a foto da Irmã Doris da Congregação Franciscana em Mallersdorf – sobre sua experiência na escola técnica ela conta “no início, os colegas de meu curso estavam consternados: uma mulher com esta profissão e ainda mais freira, era um pouco demais”. Ela aprendeu a fazer cerveja com sua antecessora, que já tinha mais de já 70 anos, o que também faz a gente não esquecer o fundamental papel das idosas na transmissão das melhores receitas.
Cervejarias artesanais contemporâneas
Hoje se fala bastante sobre o florescimento das cervejarias artesanais – fenômeno que se inicia nos Estados Unidos nos anos 80 e chega ao Brasil por volta dos anos 90-2000. A famosa movida contra o “espectro pálido preso dentro de uma lata”, como diz o Garret Olivier. A agitação envolveu consumidores e pequenos fabricantes que buscavam a mercadoria “cerveja com mais gosto de cerveja” (isto é, mais próxima ao padrão europeu de produção, que foi afastado do paladar dos norte-americanos com os anos da Lei Seca).
Com este movimento, fazer cerveja em casa voltou a ser um hábito cultivado, comprar de pequenos fornecedores, experimentar marcas novas e desconhecidas, sabores mais amargos, cheiros diferentes. Embora as grandes brigas envolvendo concorrência entre cervejarias, alterações na legislação, tributação e formas de distribuição existem e seguirão existindo, você pode imaginar.
Com relação a gênero, algumas mudanças são perceptíveis – é bem mais difícil ver uma cerveja artesanal estampar a típica propaganda-de-mulher-pelada por aí, mas são mudanças tímidas. Segue sendo um domínio da masculinidade (e, antes que eu fique melancólica e comece a dizer que amo as blogueirasfeministas, peça mais uma. Ou melhor, não, que vou ali até o banheiro). Enfim, uma mercadoria é sempre uma mercadoria.

E no Brasil?
Dizem que o Brasil “não possui a cultura da cerveja”. Embora soe impactante, esta frase não diz tanto: o mercado brasileiro apenas perde, em volume, para a China, EUA e Alemanha, sabia? Aprendi esses dias. Mas é verdade: não me recordo dum carnaval ou duma copa do mundo sem assistir a trilhões de propagandas de cerveja. Por aqui até dizem: o bar é a praia do paulistano.
A repetição do mantra da tal “falta de cultura” parece uma forma bem efetiva de proteger as grandes cervejarias de serem criticadas pela mercadoria que engarrafam e ainda indicam servir estupidamente gelada. E que difícil competir! As cervejarias artesanais brasileiras empregam cerca de quatro vezes mais e pagam mais impostos. É quase a concorrência das pequenas e valentes editoras de poesia contra as editoras internacionais gigantonas com suas gôndolas nas parceiras megastores. Só que a cerveja artesanal fica com preço final bem salgado. Como o livro. Que também é comemorado hoje com o “Dia Mundial do Livro”. Quem sabe em uns anos a gente não comemora de verdade? Difícil.
Olha, pra não te desanimar por completo (tenho certa tendência ao pessimismo), vi uns grupos de mulheres cervejeiras bem legais – as Maltemoiselles, a FemAle Carioca, devem existir milhões de outros que eu, por incompetência, não consegui localizar via google. E há aquelas profissionais incrivelmente talentosas como a mestre-cervejeira Cilene Saorin e a especialista em sabores e aromas Nicole Erny, ambas respeitadas internacionalmente (por outro lado, será que só tendo este nível tão alto de sabedoria e aptidão é que elas estão por aí?).
Bom, agora tenho que ir. Sempre levanto cedo, aquela história. Tudo bem, pode baixar a saideira. Não, a gente não conseguiu responder à pergunta. Eu sei. É sempre assim, a gente desvia. Fala um monte de coisa e se desvia. Mas vou nessa, fica pruma próxima. Beijo no coração.
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Agradeço às maravilhosas amigas de copo Jeanne Callegari, Jussara Oliveira e Nessa Guedes, que colaboraram com o post e com ideias malucas em geral.
Indicações: “A mesa do mestre cervejeiro” de Garrett Oliver e “A história do sabor” de Paul Freedman, ambos da Editora SENAC, além da “Revista da Cerveja”, revista trimestral, que tem artigos variados.
Imagens retiradas de “Das Grosse Lexikon vom Bier”, organização de Rolf Lohberg, VMA.
E deixo o convite, para quem estiver em São Paulo, sobre o lançamento do “Sarabanda” livro de poesia que escrevi, agora reeditado pela Editora Patuá. Dia 25/04, quinta, no bar Canto Madalena, a partir das 19h – assim você pode prestigiar as pequenas e furiosas editoras de poesia.