Para falar pra fora da caixa

Texto de Deh Capella.

O meu medo ultimamente não é palpável, não é mais um daqueles corriqueiros, manjados; meu medo é da sensação de falar grego. Ou falar baixo demais. Ou falar diretamente do meu canto debaixo da cama, detrás da porta, de me expressar numa língua morta que só existe pra mim, no meu mundo.

Eu devia comemorar diariamente o fato de que o mundo virtual abriu centenas de portas e permite um trânsito de vozes nunca visto; devia ficar feliz porque ele me conectou a uma montanha de gente e de ideias que talvez não chegassem a mim no mesmo volume e com a mesma facilidade. Não me entendam mal, eu comemoro. Mas a sensação-rebote é o medo de que já falei, é a angústia de pensar que é preciso falar pra fora da caixa e é tão difícil – porque ao mesmo tempo em que me conecto a tanta gente e leio/falo tanto por outro lado crio uma pequena fortaleza, confortável, cômoda e acolhedora, onde interajo mais e cada vez mais com quem pensa como eu, onde sou ouvida por quem tem pelo menos alguma coisa em comum comigo. Isso eu não devia comemorar – e não o faço. Ou não faço mais.

Há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que gira? Imagem de @jepoirrier no flickr, alguns direitos reservados.
Há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que gira? Imagem de @jepoirrier no flickr, alguns direitos reservados.

Como fazer qualquer tipo de ativismo se o que você tem a falar não sai das fronteiras delimitadas pelas suas relações virtuais, tão cultivadas e tão seletas? Como fazer a minha voz chegar longe, como plantar as pulgas que considero importantes nas orelhas das pessoas, como dar conta da conscientização que classifico como tão fundamental dessa forma?

A primeira coisa você pode pensar é: levante a bunda da cadeira. Ativismo de sofá é vergonhoso, saia às ruas. Mexa-se. Ótimo, autocrítica feita, conselho aceito – é preciso mesmo sair dos limites das minhas paredes. Mas será que você me permite contestar um pouco essa ideia cristalizada de que o cyberativismo é necessariamente descolado da prática-ativa-presencial, se é que posso chamá-la assim, e me permite também questionar a crença de que ele não funciona? Há muitos exemplos de que a mobilização digital funciona, e se não fosse o caso não haveria pessoas, empresas e instituições preocupadas com o que pensa, o que expressa e o que faz o Homo digitalis. A verdade é que as ideias florescem e se esparramam com velocidade inacreditável graças ao ambiente virtual, a troca de experiências é riquíssima ali (aqui) e isso é um dos fatores que abastece a mobilização presencial que tanta gente valoriza acima de tudo.

Assim como não adiantaria que eu fosse sozinha levando um caixote e minha voz a um canto qualquer escolhido por mim o alcance da minha mensagem seria limitado. Sozinha eu seria mais uma dessas pessoas que andam pelas ruas falando sozinha ou pregando afogueada para uma multidão que passa sem parar.

A primeira questão é que, online ou offline, eu não renderia muito sozinha. Não tenho qualquer dúvida a respeito disso. Já disse que uma das coisas que faz do nosso tempo uma época interessante, sem precedentes, é justamente a possibilidade de associação com outras pessoas que vivenciamos. Pra que brigar sozinha?

A segunda: brigar em que sentido? Vale a pena o corpo-a-corpo acirrado, o discurso agressivo, falado ou escrito? Vão aparecer pessoas aqui dizendo que sim, outras dizendo que não. Sou dessas. O tempo tem me feito acreditar cada vez mais na ideia de que assertividade e agressividade são coisas diferentes e que a segunda tem poder desagregador. Como é assim que acontece comigo tendo a achar que dessa forma as pessoas não vão parar pra me ouvir, vão fechar a janelinha, desassinar minhas atualizações, seguirei falando atrás da porta e só quem estiver bem pertinho vai me ouvir, quem estiver ali ao meu lado tartamudeando também vai. Mas não são essas pessoas que preciso alcançar.

Mais uma. Serei eu a ativista sonhadora de olhos brilhantes que vai apertar a campainha da casa dos outros às oito da madrugada no domingo e perguntar se elas têm um minuto para ouvir a Verdade? Não, essa não sou eu. Ainda não sei qual sou, na verdade, porque não quero vencer pelo cansaço, pela vergonha, pela resignação. Quero ser ouvida, quero fazer pensar, nem que seja para garantir uma discussão um pouco acima do tom mas que deixe questionamento plantado lá e aqui. Porque eu quero
ser desafiada também, quero ser questionada também, o conforto não me faz bem.

Para falar para fora da caixa é preciso empatia. É preciso entender quem pode estar me ouvindo e quem eu gostaria que me ouvisse. É preciso generosidade e é preciso humildade também, porque eu preciso me enxergar ao lado de quem me ouve, como se estivéssemos sentados na grama juntos proseando, e não como se o ouvinte fosse alguém mudo e passivo de quem enxergo o cocoruto do alto do meu palanque. É preciso ter paciência porque eu posso ter que explicar um bilhão de vezes bem  explicadinho o que penso e por que digo aquilo, é preciso às vezes desenhar mesmo e não há problema nenhum nisso, não deve haver – inclusive porque um dia podem ter que me desenhar alguma coisa pra que eu a compreenda e eu vou odiar se isso não ocorrer. Pra falar pra fora da
caixa é preciso ter habilidade (dançar o créu é mais fácil, você há de pensar, só precisa ter habilidade e disposição), é preciso ter jogo de cintura para encaminhar ou mesmo desencaminhar assuntos, para suspendê-los também. É preciso resignação às vezes, para reconhecer que as coisas não rendem o que se esperava, é preciso resiliência para tentar de novo. E de novo. E de novo.

Começa a semana, começa mais um dia em que eu olho para o espelho e me pergunto se já tenho alguma ideia para superar o medo que relatei lá no primeiro parágrafo. Ainda não tenho. Continuarei me perguntando. Pergunte-se você também.

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Imagem destacada: anúncio na Universidade de Essex, por @howardlake no flickr, alguns direitos reservados.