Entrevista com Carolina Stary: vamos falar de mulheres e videogames?

Texto de Bia Cardoso com colaboração de Larissa Santiago.

Em março desse ano recebemos um email da Carolina Stary divulgando seu texto: Não seja esse player – manifesto da garota gamer. Em que ela relata, de maneira bem humorada e com diversos recursos dos games, como mulheres são vistas nesse meio:

Acumulando horas de jogo, você percebe uma shitstorm de desdobramentos “menos” explícitos e não por isso menos danosos provenientes dessa lógica. Online numa sexta à noite? Você é feia, gorda e mal comida, é claro que ninguém te chamou pra sair. Explorando uma caverna sozinha? Deixa eu te acompanhar com minha espada e meu e-pênis de ouro. Jogando com classe de suporte? Certamente você não tem skill suficiente pra fazer frag e, poxa, mulher que gosta de protagonismo é attwhore, é melhor ficar na minha sombra mesmo. O PC/console é seu? Mentira, é do seu irmão ou namorado – aliás, foram eles quem te ensinaram a jogar, né. Tudo isso sem sequer digitar uma palavra no chat.

Imediamente lembrei da Anita Sarkeesian, blogueira americana do Feminist Frequency, e seu projeto Tropes vs Women in Game Videos. Anita sempre produz bons vídeos analisando a cultura pop e sua  proposta atual é analisar o sexismo e a representação feminina em diversos jogos de video games, pontuando estereótipos e tentando compreender porque videogame é “coisa de menino”. Ela começou o projeto por meio de um site de crowdfunding (financiamento coletivo) e recebeu diversas ameaças de violência. Porém, a meta de seu projeto que era de 6 mil dólares, conseguiu arrecadar 160 mil dólares! Provando que seus haters não são maioria entre as pessoas que acompanham seu trabalho.

[+] Uma mulher, uma causa nobre e um exército de “haters”.

Em 2011, americanas lançaram um manifesto contra o sexismo nos games online:

Eu não preciso de proteção. Eu não preciso de mais tesouro. Não vou te dizer o que estou vestindo e, não, não vou tirar minha camiseta. Eu não estou aqui para você se masturbar. Estou aqui para jogar”, avisam. “Não importa se eu sou gostosa, se estou menstruada, se eu gosto de meninos ou de meninas. Não me julgue baseado em meu nome, meu avatar ou minha voz. Eu te julgo por ser um cara? Não. Eu me importo com o tamanho da sua espada? Não. Online, estamos todos no mesmo time. Somos gamers. Me julgue pela minha capacidade de detonar.

Há também vídeos de humor que retratam as mulheres invertendo posições e tratando os homens como são tratadas, especialmente em jogos online, como: XBox Girls Get Revenge (infelizmente, sem legendas em português).

[+] What women want (in female video game protagonists)

O que vemos nos videogames são estereótipos bem próximos do que temos nos quadrinhos. Mulheres extremamente sexualizadas. Em jogos de luta famosos como Mortal Kombat ou Street Fighter, a saia de Chun Li sempre levanta, Kitana e Mileena ao vencerem sempre fazem poses sensuais, fora as roupas muito curtas e seios muito fartos. Além disso, ao jogar videogame é comum que os homens ao redor sempre queiram ajudar as mulheres, dizendo qual personagem devem escolher, quais caminhos devem tomar, palpitando o tempo inteiro. Ainda bem que isso não acontece com todo mundo, mas são reclamações bem comuns quando se conversa com outras mulheres que gostam de passar horas de lazer nos videogames. Fora os relatos de que em jogos online como World of Warcraft você terá menos problemas se usar um nickname assexuado ou masculino.

Carolina Stary do tumblr: derrubando o patri@rcado um-servidor-por-vez. Foto de Carolina Stary com autorização.
Carolina Stary do tumblr: derrubando o patri@rcado um-servidor-por-vez. Foto de Carolina Stary com autorização.

Pensando nisso, eu e Larissa Santiago entrevistamos a Carolina Stary para saber mais sobre o manifesto da garota gamer e sobre o sexismo nos videogames. Obrigada, Carolina.

1. Por que você decidiu escrever e publicar esse manifesto?

Vou responder da forma mais simpática e objetiva, eu escrevi pra dar risada. Eu jogo desde pequenininha e com o passar do tempo percebi que enquanto o meu interesse por esse mundo aumentava, a sensação de pertencimento diminuía, como se eu estivesse invadindo um espaço que não era meu. E de fato não é: a indústria deixa bem claro que os jogos são feitos de homem pra homem e é muito conveniente pros privilegiados que isso continue assim. Esse universo é quase que literalmente terreno inimigo, não ser homem (cis e hétero) e estar ali é um problema por si só, então quando você tem uma visão minimamente crítica fica difícil não perder a paciência. Eu perdi — se por um lado comprar toda briga era exaustivo, por outro era angustiante jogar essa sujeira toda pra baixo do tapete. Então eu mudei de postura, saquei que a minha necessidade era dialogar diretamente com quem joga comigo, não dissertar sobre a representação da mulher nos games, por exemplo. É claro que essa segunda abordagem é igualmente importante, tanto é que já existe um material bastante considerável (e em constante expansão) a respeito, mas eu procurava alguma coisa com um gatilho mais rápido e empoderador, algo como um acionador positivo menos limitado do que “oi-eu-sou-mulher-e-exijo-respeito”, por mais que essa seja a ideia básica. Só que isso é curioso quando a gente fala de internet e especificamente da “comunidade gamer”, como eu comentei no próprio manifesto. É um lance de conhecer sua plateia, entender que não se trata de argumentação ou embasamento, toda discussão ali toma um rumo incrivelmente ofensivo e pessoal onde quem “perde” é o alvo da piada. Já que é assim, eu escrevi pra virar a mesa, incomodar mesmo, rir da cara do opressor sem dó e paralelamente esclarecer uma meia dúzia de coisas pra quem ainda não entendeu nada. E, olha, deu super certo! O feedback tem sido incrível e a coletivização desse riso é muito valiosa, várias outras mulheres abraçaram o manifesto e no fim das contas é essa sororidade o que realmente interessa. Pessoalmente a experiência tem sido muito libertadora e eu digo com todas as letras que hoje sou uma gamer mais feliz.

2. Apesar do grande número de personagens femininos, a Indústria de games ainda emprega tem poucas mulheres. Qual a relação disso com o conteúdo criado? Como você vê a participação das mulheres como consumidoras de jogos de videogame hoje?

Os dados da Entertainment Software Association (ESA) são assustadores: as mulheres representam 47% do total de gamers e só 12% dessa mesma indústria. Basicamente é aquilo que eu citei lá em cima, o conteúdo é produzido de homem pra homem, logo não é nenhuma surpresa que as personagens acabem limitadas aos ideais do patriarcado. Submissas, coadjuvantes, menos capazes e mais emotivas, hipersexualizadas, enfim, elas não necessariamente vestem lacinhos cor de rosa, mas sempre carregam características socialmente construídas como femininas pra que não reste dúvida de que se trata de uma mulher. Eu costumo dizer que se elas não são donzelas em perigo, são donzelas que não oferecem perigo (ao patriarcado). Tem um caso que eu não posso deixar de citar: Remember Me é um jogo ainda não lançado protagonizado por uma mulher e enquanto o diretor criativo procurava financiamento para o projeto, ele ouviu essa justificativa: “Olha, nós não queremos publicá-lo porque ele não vai dar certo. Você não pode ter uma personagem feminina nos jogos. Ele precisa ser um homem, é simples assim”. Eu acho que isso resume bem a indústria de games e diz muito sobre como se dá a nossa participação enquanto consumidoras. Nós somos vistas mais ou menos como as personagens, nós precisamos ser homens, “é simples assim”, ou então estamos fadadas a carregar todos aqueles arquétipos de feminilidade. Curioso é que mesmo sendo responsáveis por metade do público gamer os caras insistem naquele mito do Pokémon raro, como se a nossa participação estivesse limitada a uma ou duas aparições, como se nós não fizéssemos parte daquilo ali tão expressivamente quanto eles. E aí é que tá, muito deles não nos consideram dignas do título de gamer, fecham a porta do clube do bolinha na nossa cara e dão continuidade a sua tradição misógina. Ou você é invisibilizada ou perseguida e assediada, seja como “feia, gorda, cabeça de melão” ou “oi, mina, meu, namora comigo, meu, por favor”. Agora, como eu vejo a participação das mulheres? Eu acho incrível! A mulherada está presente nos jogos online, offline, de mesa, em todos os gêneros e plataformas sem se deixar abalar por essa babaquice toda – é tudo nosso!

3. O sexismo também afeta os meninos: alguns meninos sofrem bullying quando dizem jogar The sims na escola. Qual sua opinião sobre isso?

A pompa do clube do bolinha é tamanha que eles não só se sentem aptos a deslegitimar as mulheres enquanto gamers, mas também em deslegitimar jogos enquanto… jogos! Os autointitulados players hardcore é quem ditam o que pode e o que não pode – e é claro que homem brincando de casinha no The Sims não pode. The Sims nem é considerado jogo. E isso vai muito além, determinadas armas, classes e habilidades presentes em jogos menos óbvios também são deslegitimadas. É muito comum ouvir, por exemplo, que jogar de healer é coisa de mulherzinha (ou de viado), uma vez que o papel do healer é de suporte e não de protagonismo-macho-cis-hétero como manda o manual. É o mesmo princípio dos brinquedos de menino e de menina, é óbvio que os homens também acabam sendo vítimas das próprias práticas sexistas, mas é importante notar que isso não faz deles menos privilegiados.

4. Qual o reflexo dessa imagem da mulher nos games? No que ela contribui para a sociedade?

Reitero as considerações já feitas, a representação da mulher nos jogos é limitadíssima e sua contribuição majoritariamente negativa só contribui para a manutenção do patriarcado. Ainda assim alguns casos específicos são bastantes interessantes: esse último Tomb Raider traz uma sequência onde a simbólica Lara Croft é assediada e enforcada por um homem até, possivelmente, sua morte. Particularmente eu tenho várias críticas ao jogo e a sequência em questão, mas eu passei a nutrir um carinho especial por elas depois de ler um relato lindo de uma garota que sofreu uma violência bem parecida nas mãos do pai dela, foi acionada pelo jogo, enfrentou esse trauma e saiu incrivelmente fortalecida da experiência in-game. É sem dúvida um caso de contribuição empoderadora no mínimo surpreendente através do controle.

5. Qual sua personagem feminina de games favorita e por quê?

Olha, isso aí sim é complicado. Eu já listei meus personagens favoritos e, adivinha, nenhum deles era uma mulher – e eu não consigo eleger uma favorita uma vez que favorito não é sinônimo de menos pior. Eu nunca criei laços com personagem feminina nenhuma, nunca me enxerguei nelas, acho que esse padrão de representação da mulher acabou me afastando e me deixando mais exigente na busca por uma personagem que de fato fizesse sentido pra mim. Eu ainda tenho esperança, hahaha.

6. Você joga games com outras mulheres ou conhece grupos de mulheres que juntam para jogar?

Muito pouco! Eu até conheço grupos de mulheres que jogam juntas sim e acabei conhecendo bem mais grupos e mulheres gamers depois de publicar o manifesto, mas não é comum eu jogar entre elas. Quase exclusivamente (e infelizmente) eu jogo com homens.