Da maternidade para o feminismo: por que mães feministas importam

Texto de Carolina Pombo.

Ontologia é o esforço teórico de se definir quem “é”, quem sou, quem somos. Ontologia é o trabalho sem fim da filosofia e da ciência em compreender como o sujeito se forma e tem vida. Na minha trajetória em fazer ciência (e pensar sobre quem vejo como sujeito) cheguei a uma conclusão muito importante: o paradoxo é inerente e insolúvel.  Aprendi a ver a complexidade do mundo e a dificuldade em encontrar a origem e o fim da meada sem me sentir aterrorizada. Aprendi, especialmente com Edgar Morin, Francisco Varela, e outros pensadores corajosos, que o sujeito e o mundo são construções simultâneas, sempre abertas ao movimento – e não um movimento aleatório, mas com sentido, relacionado ao passado, ao presente e ao futuro.

Definir então quem é o sujeito a quem me refiro, enquanto escrevo e me relaciono com o mundo, é sempre uma tarefa ingrata – uma tarefa inacabada. Aquela que agora é definida como “mulher”, em outra ocasião, é a “engenheira”, a “mãe”, a “filha”… Depois então de entender a crítica das feministas mais contemporâneas, as pós-estruturalistas como Judith Butler, que propõe o gênero como performance, e portanto, o descolam completamente de uma ideia naturalizada/estática, o sujeito do meu feminismo se tornou ainda mais aberto e em permanente construção.

Mas, toda vez que eu vejo uma crítica à naturalização desse sujeito, lembro-me da ideia (subversiva) de que a própria natureza não é estática. A perspectiva da complexidade subverte a ideia clássica de que a natureza é pré-existente à cultura. A própria vida possui seu “código” paradoxal: tudo muda, o tempo todo, no mundo… (não adianta fugir, nem mentir, pra si mesmo agora, há tanta vida lá fora!). As mudanças não são aleatórias nem pré-programadas, elas se dão nas interações, nos sistemas formados pelas pessoas, a tecnologia, pelos animais, as plantas, os mares, por aquilo que decidimos chamar de natureza e o que resolvemos abstrair dela. Finalmente, vejo o quanto é limitador dividir as coisas nessas duas categorias (natural x cultural), e, ao mesmo tempo, entendo o quanto é difícil abrir mão delas.

Foto de Ali Smith, integra a exposição Museum of Motherhood em Nova York.
Foto de Ali Smith, integra a exposição Museum of Motherhood em Nova York.

A maternidade é especialmente interessante para nos fazer pensar nesse paradoxo, sem medo e sem piedade. Ela aponta para uma “origem comum”, para um evento que, aparentemente, não muda nunca – o nascimento. E, também, exige uma perpetuação de práticas para se manter: não há maternidade sem alguém para exerce-la. Ela é sempre aberta, inacabada. Ser mãe é algo que nos conecta novamente à natureza (já que resolvemos nos separar dela, ao nos assumirmos “os únicos animais racionais”), porque nos faz reconhecer a semelhança com os demais seres vivos desse planeta. Mas, também nos distingue radicalmente deles, porque é diversa e contraditória, cheia de sentidos. Aquela que pari pode não desejar maternar e não fazê-lo. Aquela que não dá à luz, pode ser uma excelente mãe. Não podemos ignorar nem uma nem outra.

A maternidade tem um sujeito aberto por definição, sem descolá-lo da natureza. E aí que eu vejo a enorme riqueza que esse conceito traz para o feminismo. Se entendermos a natureza como a universalidade do paradoxo, por que então construir um sujeito para o feminismo em oposição ao que é natural? Quer dizer, se considerarmos que a mudança e a diferença fazem parte daquilo que consideramos natural, então, falar de gênero, transgenero, e outras “performances” não precisa ser feito em oposição à própria natureza. Então, não é necessário contrapor corpo e subjetividade, biologia e cultura. Então, falar de mãe como sujeito do feminismo implica em compreender que este é um sujeito sempre em aberto, entre regularidades e diferenças, heranças históricas e agenciamentos individuais.

Recentemente, li um artigo de Emily Jaremiah sobre maternidade, maternagem e feminismo, no qual ela argumenta que os limites da performatividade de gênero da mãe que protagoniza os cuidados estão nas necessidades do bebê. Não é possível subverter completamente a identidade de gênero na maternagem, porque esta implica num outro sujeito completamente dependente. A própria definição (mais aberta) de mãe não se resume ao ato de parir, mas se expande para o exercício da maternagem, e assim, afirma uma disposição para cuidar desse outro – ainda que seja um cuidado compartilhado, coletivizado. Subverter então a ideia de uma “mulher” sempre a postos para ser mãe quando existe, de fato, um bebê necessitado, não é uma tarefa fácil. É aí que Emily Jeremiah me surpreendeu, afirmando que, nessa interação própria da maternagem, a pessoa tem a oportunidade de performar, por excelência, com seu corpo e suas palavras. Com essa “ética da maternidade” e um esforço feminista de subverter a identidade de gênero, direcionando-se constantemente ao bebê/criança/adolescente, a mãe tem a oportunidade de se recriar enquanto sujeito e ao mesmo tempo de promover a diferença num novo ser que se desenvolve.

Para essa autora feminista, a arte e especialmente a arte de escrever são ferramentas interessantes nesse agenciamento da “mãe feminista”. É contando daquilo que se vive, no dia a dia, e repensando a maternagem, que ela pode subverter e reconstruir.  E eu acredito também que essa especialidade do “ser” mãe e feminista pode contribuir muito para o próprio feminismo, lembrando-nos do paradoxo (frequentemente esquecido) do sujeito que defendemos. A maternidade nos lembra que a Ontologia é sempre inacabada, e que o nosso movimento está sempre em aberto, sem nos fazer esquecer que ele também é ligado à natureza numa concepção subversiva.

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Carolina Pombo é escritora, psicóloga e pesquisadora. Curiosa, inquieta e questionadora, escreve seus diários no Kaléidoscope e aprende diariamente a ser mãe feminista.

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