Texto de Jéssica Ipólito.
No meu quarto tem um espelho gigante, que pega quase a parede inteira. Ele fica de frente para minha cama. Nos dias que o mau humor me ataca, eu fico desejando internamente, que por um descuido das forças negativas-cósmicas do universo, ele se quebre sozinho. Olha só, puxa vida! Quebrou! Que peninha…. Mas nunca acontece. Ele continua lá. Todo dia quando acordo vejo minha imagem refletida. Meu cabelo bagunçado, minhas olheiras, a cara amassada pelo travesseiro…. essa cara de quem queria continuar dormindo, mas tem que trabalhar.
Quando me mudei para esse quarto, comentei com a Lilly (minha amiga) que esse espelho me perturbava. E ela me respondeu: “Que delícia! Aproveita! Se olha de todos os ângulos, aproveita super!” Não era bem isso que eu queria ter ouvido na hora, mas depois entendi. A verdade é que tenho olhado e refletido mais sobre a minha imagem. Eu não me sinto linda todos os dias, mas eu me sinto bem com meu corpo. Acho isso importante: me olhar e não sentir repulsa; não me sentir culpada pela minha forma; me olhar no espelho e me entender fisicamente, não evitar a minha imagem.
Nem sempre foi assim. Passei minha adolescência inteira evitando espelhos grandes, fotos que me pegassem de corpo inteiro; falar do meu peso, subir em balanças perto de pessoas (des)conhecidas NEM PENSAR; ir comprar roupas com as minhas amigas, então… Não acontecia. Era bem complicado porque eu não tive ninguém para falar que “tudo bem, você é gorda e é linda assim, relaxa aí”.

Eu só tinha uma mãe que se preocupava com a minha saúde de forma maquiada. Ela não fazia por mal, mas a vida toda sempre se preocupou com o que as outras pessoas pensariam de mim, dela, da nossa família. (Imagina a loucura dessa senhora com uma filha sapatão?! Pois é…). O fato dela me querer magra nunca foi exclusivamente pela minha saúde, acreditem. Minha mãe é do tipo que prioriza a imagem refletida para os outros… Tudo, absolutamente tudo precisa estar de acordo com o que é dito como socialmente aceito. Mesmo assim, eu não a condeno porque sei de todo processo que ela sofreu pra pensar dessa maneira… e entendo o quão difícil é para ela desconstruir isso tudo (acabei adotando outras estratégias paraconseguir ficar bem, uma delas foi entender meu corpo).
Quem me conhecia pela internet, lá pras bandas do Orkut & Fotolog, só conhecia meu rosto, que: era alterado pelo Photoshop. Não é à toa que fui muito boa nesse programinha; eu conseguia tirar e colocar tudo que eu quisesse, e de quebra, ainda fazia uns retoques quando minhas amigas pediam nas fotos. Era super legal, só que não.
Por trás dessa alteração facial, escondia um descontentamento com a minha aparência. Escondia meu rosto com muita maquiagem (exageradamente) e Photoshop, porque ao natural, eu não seria aceita. E eu queria essa aceitação, poxa vida. Mas, naquela época, pra me conhecer mesmo, tinha que ser só pessoalmente. E ainda era complicado…. Eu me modificava tanto ao ponto das pessoas não me reconhecerem à primeira vista. E eu acreditava que ninguém reparava nesses detalhes…. olha que ingênua.
No entanto, minha aceitação pessoal foi acontecendo aos poucos. Já contei que tenho 21 anos? Saí da bolha maciça recentemente. Me descobri lésbica & negra, me aceitei gorda tudo de uma vez só… Foi uma avalanche! Minha ex-companheira teve uma parcela de culpa boa muito grande nisso tudo. Porque ela conseguia me ver bonita enquanto gorda, mas eu não… ai tive umas crises estranhas até entender o que se passava comigo:
1º Porque: eu não achava que ela ficaria muito tempo comigo por motivos de: SOU GORDA. OMG! ELA NÃO PERCEBEU! TEM 3 MESES E ELA NÃO PERCEBEU!?? LOGO VAI CAIR A FICHA E ELA VAI TERMINAR CMG, HELPPPP”. Conclusão: Ela passou dois anos do meu lado. Transando e me amando, ok.
2º Porque: eu achava que por ser gorda, absolutamente ninguém na face dessa bendita Terra, iria querer ficar comigo (afeitva & sexualmente falando). E bom, não foi isso que aconteceu. Eu só precisei prestar atenção no que acontecia ao meu redor. Eu não percebia quando mulheres me paqueravam, porque né… sou gorda, logo não atraio ninguém. Pura balela, acredite. Foi tudo uma questão de me atentar, e eu continuo fazendo isso… Mas é porque me acostumei tanto com essa de ‘ninguém me olha’ que tenho que me policiar e prestar atenção. Se você não olhar ao seu redor, realmente… Fica complicado de perceber as coisas.
Um adendo: Já tem mais ou menos uns 2 anos que não manipulo meu rosto nas fotos e não uso o exagero de maquiagem que usava antes. E tem também quase 2 anos que eu acredito quando as pessoas comentam: Que linda! Porque sou eu de verdade, crua. Nenhuma alteração. O que as pessoas enxergam sou eu mesma e ponto final. Isso faz dá uma upgrade na autoestima.

Ainda tenho problemas com a minha mãe, que não gosta de mim assim “tão gorda”. Vive falando de dietas xis, de médicos milagrosos. Já falou comigo sobre a cirurgia bariátrica, até me levou numa especialista que fazia essa intervenção cirúrgica. Mas aí, quando a médica disse o valor (17 mil reais, na época), minha mãe desistiu e não tocou mais no assunto. Era um preço exorbitante pelo meu estômago, gente! Não quero vender pra ninguém… Nasceu inteiro comigo e vou morrer com ele assim. Ele tá no lugar que deveria estar, bonitinho.
Logo, passei a achar lojas que vendiam roupas legais, sem aquela de blusas de estampa-estranha e calças folgadas-horríveis, que eu nunca fui fã, sabe? Lojas com roupas bacanas. Aí fui me sentindo melhor. Eu tinha roupas legais! Tinha a fonte delas, aliás. Foi muito importante isso, uma vez que eu sempre encanava por não ter roupas descoladas e tal… Essa era uma questão que me deixava presa em casa por muitas vezes. Mas, atualmente, facilita muito saber onde comprar as roupas.
O mais interessante disso tudo é que todos os dias, eu tenho que lembrar a mim mesma o porque não optei por alguma medida mais drástica para diminuir meu peso. Por todos os lados me vem mensagens de emagrecimento. Me parece algo automático que é reproduzido em todo canto por onde eu passo, insistentemente:
– Seja no ônibus que eu pego pra ir no trabalho, onde a catraca é minúscula e eu tenho pavor de ficar entalada naquilo (alguém já passou por isso? É tenso); aí desenvolvi métodos para não ter problema nesse momento. Hoje eu sei que com calça jeans, rodar naquilo é mais complicadinho, já com calças de malha ou algodão (não-jeans, no geral) eu escorrego numa boa. Me ajudou muito e hoje em dia eu fico menos receosa. Menos porque, a cada ônibus diferente, parece que a catraca diminui. E isso me deixa irritada. Eu já sei a cor dos ônibus aqui em SP que tem as catracas ótimas, e procuro sempre pegar os mesmos. E não, eu não me sinto escrava disso…. Eu precisei achar medidas que me contemplasse, já que todo o resto não faria isso por mim, né?!
– No cursinho pré-vestibular onde eu estudei, a cadeira era horrível para umx gordx. Gente, que desconforto, viu! Ficava metade da minha bunda pra fora e o apoio de caderno fica justo ao meu corpo. É um porre isso. Não se preocupam se o seu tamanho for diferente, quem tem que se esforçar e caber naquele espaço é você. Se vira!
– No boteco da esquina, que tem aquelas cadeiras de plástico onde não me cabe confortavelmente, espreme minha bunda e me deixa insegura só contando os minutos até a queda fatídica (se o chão for liso então, vishi! Eu nem sento que é pra evitar fadiga).

Essas coisas, no dia a dia, me dão um baita desânimo…. Mas aí eu lembro o porque continuo gorda:
Eu gosto do meu corpo. Sou toda gostosa de apertar, mew! Pra me abraçar você tem que usar seu corpo todo, e isso é tão bom (adoro abraços). E meus seios são ótimos pra encostar a cabeça (sério!). E eu não vou mudar por conta desses obstáculos pra ficar como a sociedade quer. Mas vem cá, e o que eu quero? Foda-se, eu não tenho querer? Que isso, não e não, definitivamente. Eu compreendo muito bem as questões de saúdes, mas aqui e agora, não se trata de saúde. Porque doença eu não tenho, porque preciso realmente viver infeliz por conta do meu peso? Porque eu preciso viver buscando me enquadrar numa norma física que é imposta e nem se quer se preocupa com a minha satisfação íntima? Todxs nós, gordxs ou não, precisamos nos preocupar com a saúde, fazer exames e se cuidar. Mas acreditem, dá pra ser assim… dá pra cuidar da saúde sem caber numa calça 36. Dá pra se sentir bem, ter a saúde ótima, mas não pesar 48kg. Dá perfeitamente para começar uma revolução e parar de odiar o seu corpo.
É lógico que é difícil passar por tudo isso, ninguém nunca me disse que seria fácil e eu não vou dizer isso a você, que se manteve firme até o final desse texto.
Não é fácil não, mas não é impossível, tá? E a sua vontade, o seu bem estar, a sua satisfação, a sua autoestima precisam PERMANECER em primeiro lugar, no top list de prioridades na sua vida. E se ainda houver vestígios de insegurança, lembre-se todos os dia dos seus porquês, que são só seus e muito íntimos. E não interessa ninguém. Só você. Sua felicidade e prazer.
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Jéssica Ipólito é gorda e sapatão. Militante da Fuzarca Feminista (MMM) de São Paulo/SP. Escreve no blog: Gorda e Sapatão – lesbianidade, sexualidade, feminismo, bodypositve.