Identidade horizontal versus identidade vertical e como o amor nos modifica e nos torna mais ainda nós mesmos

Texto de Maria Popova. Tradução de Deh Capella.

Originalmente publicado com o título: Horizontal vs. Vertical Identity and How Love Both Changes Us and Makes Us More Ourselves, no site Brainpickings.org

O texto abaixo não representa, necessariamente, a opinião global do grupo FemMaterna ou das Blogueiras Feministas. Conceitos e ideias expressos são de responsabilidade da autora original do texto e do autor por ela citado. O ponto-chave, que nos interessa particularmente, é a discussão da identidade da criança e de sua relação com pais/cuidadores.

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Identidade horizontal vs. identidade vertical e como o amor nos modifica e nos torna mais ainda nós mesmos.

Texto de Maria Popova.

Não aceito modelos de amor subtrativos, apenas os aditivos.

Dizem que “quem somos e quem nos tornamos depende, em parte, de quem amamos”. Mas o oposto também é verdade – desabrochamos como somos sob a quentura reconfortante do amor que nos rodeia.

far-from-the-tree-cover-223x339 (1)Essa bonita osmose é exatamente o que Andrew Solomon explora em Far from the tree: parents, children and the search for identity – uma fascinante e profundamente tocante reflexão sobre nossas definições de família, nossas diferentes atitudes em relação à parentagem, os desafiadores ideais de maternidade e paternidade e, talvez a respeito de tudo isso, como a liberdade de identidade nos une em nossas diferenças.

“Psicologicamente nada influi mais sobre o ambiente e especialmente sobre as crianças”, o lendário psicanalista Carl Jung afirmou, “que as vidas não-vividas dos pais”. E, de fato, a propensão para projeção dos pais que querem ver em seus filhos versões melhores ou incompletas de si próprios, de acordo com Solomon, é um subproduto perigoso de nossos genes:

Nas fantasias subconscientes que fazem a concepção parecer tão encantadora, em geral somos nós mesmos que queremos ver viver para sempre, e não alguém com personalidade própria. Tendo vislumbrado a continuidade de nossos genes egoístas, muitos de nós estamos despreparados para crianças que apresentam demandas que nos são estranhas. A parentalidade nos catapulta abruptamente em uma relação permanente com um estranho, e quanto mais alienígena ele é, maior o sopro de negatividade. Nós dependemos da garantia, vislumbrada nas nossas crianças, de que não vamos morrer. Crianças cuja qualidade definidora aniquila essa fantasia de imortalidade são um insulto particular; temos que amá-las pelo que são, e não pelo nosso melhor que há nelas, e isso é algo difícil de fazer. Amar nossas crianças é um exercício para a imaginação… [Mas] nossas crianças não são nós mesmos: elas levam adiante genes e tratos recessivos e são sujeitas desde sempre aos estímulos do ambiente que estão além de nosso controle. E ainda assim somos nossas crianças; a realidade de ser pai/mãe nunca deixa aqueles que desafiaram a metamorfose.

Solomon continua, diferenciando identidade vertical, ou diretamente herdada, e horizontal, ou independentemente divergente:

Em função da transmissão de identidade de uma geração para a seguinte, a maior parte das crianças compartilha ao menos alguns traços com seus pais. Essas são as identidades verticais. Atributos e valores são passados de pais para filhos ao longo de gerações não só por meio de cadeias de DNA, mas também por normas culturais compartilhadas. Etnicidade, por exemplo, é uma identidade vertical. Crianças negras em geral são nascidas de pais negros, o dado genético da pigmentação da pele é transmitido ao longo de gerações com uma autoimagem de pessoa negra, mesmo que essa autoimagem seja sujeita a fluxos geracionais. A linguagem é em geral vertical, já que a maior parte das pessoas que fala grego cria suas crianças para falá-lo também, mesmo com outra inflexão ou falando outra língua ao mesmo tempo. Religião é moderadamente vertical: pais católicos tendem a criar filhos católicos, mesmo que as crianças possam se tornar não-religiosas ou se converter a outra religião. Nacionalidade é vertical, exceto para imigrantes. Cabelos loiros e miopia são em geral transmitidos de pai para filho, mas na maior parte dos casos não formam uma base significativa para identidade – os cabelos loiros porque são bastante insignificantes, e miopia porque pode ser corrigida.

Entretanto, frequentemente há alguma característica nata ou adquirida que é estranha aos pais e deve  ter sido trazida por outros pares. Isso é uma identidade horizontal. Essas identidades horizontais podem refletir genes recessivos, mutações aleatórias, influências pré-natais ou valores e preferências que a criança não compartilha com seus pais. Homossexualidade é uma identidade horizontal; a maior parte das crianças gays é nascida de pais heterossexuais, e uma vez que sua sexualidade não é determinada por seus pares, elas apreendem a identidade gay observando e participando de uma subcultura externa à família. A deficiência física tende a ser horizontal, assim como o gênio. A psicopatia é também horizontal; muitos criminosos não são criados por bandidos e se iniciam no crime. Assim também ocorre com condições como o autismo e a incapacidade intelectual.

Solomon não passou a considerar essas intrincadas questões até que tivesse contato com sua própria identidade horizontal. Em 1993 ele foi designado para escrever sobre a cultura dos surdos para o jornal The New York Times e fez uma imersão no mundo dos surdos – em que a maior parte das crianças é filha de pais que ouvem, que em geral gostariam que seus filhos escutassem e tivessem vidas “normais”. E ele se viu em contato com a vibrante riqueza da identidade dos surdos quando presenciou performances teatrais, conheceu clubes de leitura e concursos de beleza.

Pouco tempo depois, a filha de um amigo de Solomon foi diagnosticada com nanismo e o pai “se questionou se devia fazer com que a filha se considerasse igual a todos os outros, apenas menor, ou se devia se assegurar de que a filha tivesse seus próprios modelos anões”. De repente um padrão se revelou – a tendência para uma cultura de “normalidade”, incluindo os pais das crianças com identidades horizontais diferentes, que tenta subverter ou mesmo “curar” essas identidades – e isso foi dolorosamente familiar a Solomon, que é gay. Ele escreve:

Eu havia me assustado ao perceber uma base em comum com os surdos, e agora eu me identificava com uma anã; eu me perguntava quem mais estaria esperando para se juntar à nossa alegre multidão. Eu pensava que o “ser gay”, uma identidade, poderia crescer a partir da homossexualidade, a doença, e a Surdez, uma identidade, poderia crescer a partir da surdez, uma doença, e se o nanismo como identidade poderia emergir de uma aparente deficiência, então deve haver muitas outras categorias nesse estranho território intersticial. Foi um insight radicalizador. Tendo sempre me imaginado como parte de uma pequena minoria, eu de repente vi que estava em vasta companhia. A diferença nos une. Enquanto cada uma dessas experiências pode isolar quem é afetado por elas, juntos elas compõem um grupo de milhões cujos esforços os conectam profundamente. O excepcional é ubíquo, ser inteiramente típico é o estado raro e solitário.

Mas nas famílias, Solomon argumenta, muitos pais tendem a perceber a identidade horizontal de sua criança não só um problema a ser resolvido, mas como uma falha pessoal ou mesmo uma afronta. Ele observa:

Poderíamos argumentar que negros enfrentam muitas desvantagens nos EUA hoje em dia, mas há pouca pesquisa sobre como a expressão genética pode ser alterada para fazer com que crianças filhas de pais negros nasçam como cabelos lisos e finos e tez clara. Na América moderna às vezes é difícil ser asiático, judeu ou mulher, e ainda assim não se sugere que asiáticos, judeus ou mulheres seriam tolos se não se tornassem homens brancos e cristãos se pudessem. Muitas identidades verticais deixam as pessoas incomodadas, e ainda assim tentamos não homogeneizá-las. As desvantagens de ser gay não são maiores do que aquelas advindas de identidades verticais, mas muitos parentes vêm há tanto tempo tentando transformar seus filhos gays em crianças não-gays…. Rotular a mente de uma criança como doentia – seja com autismo, com inabilidades intelectuais ou transgeneridade – pode refletir mais o desconforto que a ideia causa aos pais do que o desconforto que causa à criança.

Como temos observado no caso do poderoso papel da linguagem em outras mudanças culturais e nos movimentos pela justiça social, a forma como falamos desses assuntos não só reflete mas molda a forma como pensamos sobre eles. Solomon ressalta a necessária mudança de vocabulário usando uma analogia:

Frequentemente usamos o termo “doença” para rebaixar uma forma de ser, e “identidade” para validar essa mesma forma de ser. Essa é uma falsa dicotomia. Em Física, a interpretação de Copenhagen define energia/matéria como algo que se comporta às vezes como onda e às vezes como partícula, o que sugere que é ambas as coisas, e fica posto que é limitação nossa a incapacidade de enxergar ambas ao mesmo tempo. O físico Paul Dirac, vencedor do Prêmio Nobel, identificou como a luz parece ser uma partícula se a questionamos como tal, e uma onda se colocarmos uma questão pertinente a uma onda. Uma dualidade parecida existe em relação ao ser. Muitas condições são ao mesmo tempo doença e identidade, mas como podemos ver apenas uma quando a outra é obscurecida. A política de identidade refuta a ideia de doença, enquanto a Medicina deixa de lado a identidade. Ambas são diminuídas por sua estreiteza.

Físicos têm alguns insights compreendendo energia como onda, e outros compreendendo-a como partícula, e se valem da mecânica quântica para reconciliar a informação que reuniram. Da mesma forma precisamos examinar “doença” e “identidade”, compreender que a observação vai ocorrer normalmente em um domínio ou outro, e utilizar uma mecânica sincrética. Precisamos de um vocabulário em que ambos os conceitos não sejam opostos, mas aspectos compatíveis de uma condição. O problema é mudar a forma como entendemos o valor de indivíduos e vidas, para chegar a uma abordagem ecumênica do que é “saudável”.

Solomon afirma que ter um filho com identidade horizontal muito diferente daquela do pai ou mãe é como ter uma lente de aumento sobre o caráter dos pais e sobre sua capacidade como ser humano.

Ter um filho excepcional exacerba as tendências pa(ma)ternas, quem tende a ser um pai ruim se torna péssimo, mas aqueles que seriam bons se tornam extraordinários.

Mas a dinâmica ocorre das duas formas:

As reações dos pais e a interação com um filho determinam como aquela criança vai se enxergar. Esses pais são também profundamente tocados por suas experiências.

“O amor pode mudar uma pessoa”, Lemony Snicket escreveu em Horseradish: bitter truths you can’t avoid, “como um pai/mãe pode mudar um bebê – de forma estranha e em geral com grande confusão”. Mas Solomon pensa precisamente no inverso – que uma criança pode mudar um pai/mãe, estranha e confusamente, com o poder do amor:

Autoaceitação é parte do ideal, mas sem aceitação familiar e social ela não pode melhorar as implacáveis injustiças às quais muitos grupos de identidade horizontal estão sujeitos e ela não trará as mudanças adequadas. …Olhar profundamente nos olhos de seu filho e ver nele ao mesmo tempo você mesmo e algo completamente estranho e então desenvolver uma ligação zelosa com cada aspecto dela, é alcançar o abandono auto-referente da pa(ma)ternidade, porém de forma altruísta,. É impressionante quão frequentemente essa mutualidade tem sido compreendida – quão usualmente pais que imaginaram que não poderiam cuidar de uma criança excepcional descobrem que podem fazê-lo. A predisposição parental para o amor prevalece nas mais dolorosas circunstâncias. Há mais imaginação no mundo do que se poderia pensar.

O que o ponto-chave de Solomon mostra é mais uma das mais notáveis definições de amor da História. Em suas páginas finais ele escreve:

Algumas pessoas estão presas à crença de que o amor vem em quantidades finitas, e que nosso tipo de amor esgota a fonte de onde ele vem. Eu não aceito modelos de amor competitivos, apenas os aditivos. Minha jornada pela família e esse livro me ensinaram que o amor é um fenômeno amplificador – que todo amor a mais reforça todo amor que existe no mundo.

Em sua vívida fala no TED, Solomon parafraseia esse sentimento agudo de forma ainda mais bela:

Eu não aceito modelos subtrativos de amor, apenas os aditivos.

Far from the tree chega uma década após o indispensável The Noonday Demon: an atlas of depression.

“Love, no matter what” – Andrew Solomon

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Imagem destacada: Judeus etíopes resgatados pela Associação Americana de Judeus Etíopes, 1983. Fonte: American Jewish Historical Society, EUA.

Deh Capella é bibliotecária, mãe, feminista, leitora, musical, curiosa. Escreve no blog Por trás da tela…

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