Estatuto do Nascituro e a afronta a biologia

Texto de Karollyna Alves.

Primeiro, gostaria de fazer duas ressalvas. A primeira é agradecer a querida feminista que me motivou a escrever sobre este assunto: minha mãe. A segunda é esclarecer que sou formada em biologia, logo tenho bastante embasamento para analisar a questão do Estatuto do Nascituro (Projeto de Lei 478/2007) e o desenvolvimento científico da biologia celular.

Bem, na realidade, não tinha a ideia do que escrever sobre este tema, até porque já há várias postagens a respeito, inclusive nesse blog. Porém, depois de um diálogo com minha mãe, percebi que precisava esclarecer algumas questões que com ajuda da mídia e da nossa má formação escolar acabamos por acreditar. São muitos mitos distorcendo radicalmente a realidade.

Pois bem, conversando sobre os vários absurdos do Estatuto do Nascituro, falei à minha mãe da forma ridícula como o texto trata a fertilização in vitro e as pesquisas com céulas-tronco, referindo-se como “atrocidades”. Daí ouço de minha mãe: “Até que essa parte dos cientistas, dessas pesquisas, essas coisas eu concordo que não devam ser feitas”. Meu queixo caiu no chão, mas nada que uma conversa bem fundamentada não a fizesse mudar de ideia.

Fecundação realizada por intervenção humana. Foto de image Editor no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Fecundação realizada por intervenção humana. Foto de ‘Image Editor’ no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Quem é o nascituro?

No Projeto de Lei 478/2007, aborda-se o assunto da seguinte maneira:

Art. 2º Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido.

Parágrafo único. O conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos “in vitro”, os produzidos através de clonagem ou por outro meio científica e eticamente aceito.

Dos crimes em espécie

Art. 25 Congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de experimentação:

Pena – Detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.

Justificação

A proliferação de abusos com seres humanos não nascidos, incluindo a manipulação, o congelamento, o descarte e o comércio de embriões humanos, a condenação de bebês à morte por causa de deficiências físicas ou por causa de crime cometido por seus pais, os planos de que bebês sejam clonados e mortos com o único fim de serem suas células transplantadas para adultos doentes, tudo isso requer que, a exemplo de outros países como a Itália, seja promulgada uma lei que ponha um “basta” a tamanhas atrocidades.

Quando usamos expressões como: “manipulação”, “congelamento” ou “comércio de embriões humanos”, a maioria das pessoas pensa em imagens das melhores ficções científicas, com laboratórios repletos de humanos guardados esperando a hora de “despertarem” no melhor estilo Matrix. Entretanto, essas cenas imortalizadas na mente das pessoas dão uma falsa impressão de teorias da conspiração, pessoas que foram clonadas e agora arcam com problemas existenciais, cinetistas frios e desumanos, etc. E, nos esconde uma verdade que nem percebemos existir, a de que usamos esses “experimentos macabros” no nosso dia a dia constantemente sem nem perceber.

Cena do filme “A Ilha” (2004) onde existe uma “fábrica de seres humanos”.

Clonagem e alimentos

Para início de conversa, a tão temida clonagem de seres em equipamentos de vidro já é realizada há muito tempo, através da cultura de tecidos vegetais. E, é graças a essa técnica que conseguimos produzir comida em larga escala que seja disponível para maioria dos seres humanos (infelizmente não a todos). Na cultura de tecidos in vitro, as minúsculas mudas de plantas são condicionadas em tubos de ensaio com meios de cultura propícios para que se desenvolvam e, só depois é transportada para o cultivo em campo, onde crescem como outra planta qualquer que tenha sido gerada através da semente. A clonagem também ocorre, quando separa-se céulas ou segmentos de determinada espécie que são replicadas gerando indivíduos idênticos entre si.

Lembram da Teoria Malthusiana de que a população careceria de comida num futuro não muito distante? A que dizia que a população cresceria em progressão geométrica enquanto a disponibilidade de comida cresceria em progressão aritimétrica, causando a fome por consequência? Uma das principais razões desta teoria não ter se firmado na prática foi o fato de que o então economista Thomas Malthus não levou em consideração os avanços tecnológicos, assim como a qualidade de produção da agricultura, fazendo com que fossem produzidos alimentos para grandes populações. Então, se não estamos morrendo de fome, agradeçam também à cultura de tecidos in vitro e a clonagem.

Tá, mas aí você me pergunta: por que estou falando de plantas se o Estatuto do Nascituro não dispõe de que as mulheres vão conceber jacas dentro de seus úteros? Apesar de eu rebater de que assim como seres humanos as plantas também são vida, vamos passar para as células animais.

Clonagem e animais

Talvez não seja novidade a utilização da fertilização in vitro utilizada em larga escala na pecuária. O que talvez não saibam é que, segundo a Sociedade Brasileira de Tecnologia de Embriões (SBTE), em 2005, 54,3% dos embriões foram produzidos através da técnica in vitro; enquanto 45,6% foram decorrentes de embriões in vivo. Atualmente, o Brasil é o maior produtor mundial de embriões bovinos oriundos da fertilização in vitro. Existe um imenso mercado lucrativo por conta desta técnica, o que me faz pensar ser um bom motivo para não se falar em nenhum Projeto de Lei que queira assugurar o direito das primeiras células das vaquinhas.

Ah garota, mas até agora você falou de plantas, animais e nada de seres humanos, que são o foco do Estatuto do Nascituro! Então, vamos discutir sobre os biofármacos.

Produção de Biofarmácos

Sabe quando certas pessoas que possuem diabetes e são insulino dependentes — precisam receber insulina, pois o corpo já não o produz — tomam aquelas injeções chatinhas? Ou quando se acidentam e precisam receber plasma humano? Pois é, dê graças por aquelas células bonitinhas estarem nas mãos de cientistas qualificados que realizam a produção destas drogas não-sintéticas.

Biofármacos são medicamentos produzidos através de céulas de tecido animal ou humano. Como não é incomum pessoas não se adaptarem aqueles produzidos por animais — é o caso da insulina, por exemplo — faz-se necessário produzi-las através de células humanas. Isto salva muitas vidas, todos os dias, em todos os lugares do mundo.

Agora vou chegar no “X” da questão. Os que defendem o Estatuto do Nascituro acreditam que os cientistas querem congelar bebês em laboratório e fazer malvadezas ou até mesmo vender no mercado negro para mulheres que não conseguem engravidar pelo método “natural”. E mais, vão matar as pobres criaturinhas para curar os aleijados. Se Deus os deixou daquele jeito é porque merecem!

Imagem do videoclip da banda Nirvana: “Heart shaped box”.

O que pretende o Estatuto do Nascituro?

Para escrever sobre isso preciso dar um looongo suspiro… Podem até rebater que falar sobre plantas e animais é fácil, já que são “apenas células que não possuem consciência”. Pois é, só que na fertilização in vitro de seres humanos e na utilização de células-tronco acontece a mesma coisa.

Quando há a fecundação — espermatozóide fecunda o óvulo — será iniciado o processo de divisão celular, gerando diversas células que ainda irão se “separar” para formar os tecidos e, posteriormente, os órgãos. Muito depois formará o embrião com atividades cerebrais, cardíacas, respiratórias, etc.

Como não se coleta apenas um óvulo e um espermatozóide, são feitas várias fecundações. Quando fecundado, o óvulo não é um ser vivo. São células, com material genético diferente, assim como as plantas acima mencionadas, que passam pelos processos de melhoramento genético ou as células produtoras de biofármacos. As plantas e biofármacos são fruto de células transgênicas, possuem material genético difereciado. Esta célula que está se replicando, após a fecundação, também possui um material genético diferenciado de seus genitores.

Além do mais, ninguém entra num laboratório e pega quantos óvulos fecundados der na cabeça e sai fazendo o que quiser e bem entender com eles. Existe a chamada Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005) para que sejam delimitadas regras especificas a fim de se determinar o que pode ou não ser realizado, o procedimento a ser utilizado, quem pode fazer e com autorização dos responsáveis (os doadores dos óvulos e espermatozóides).

Quando o Conselho Federal de Medicina diz que é favorável à prática do aborto até a 12° semana de gestação, eles sabem que a vida não começa estritamente com a fecundação. Ao contrário do que muitos imaginam, a vida não começaria nem mesmo nos primeiros batimentos cardíacos, mas sim, com as atividades cerebrais. A pulsação sanguínea começa antes da formação cerebral e, em casos de fetos anencéfalos, todos os órgãos do corpo são desenvolvidos completamente, menos a região encefálica, a qual impossibilita a vida.

No vídeo abaixo é possível ver a injeção de tinta em um embrião de galinha, com detalhes do batimento do coração e da bela complexidade dos vasos arteriais:

 

Portanto, além das demais atrocidades que o Estatuto do Nascituro propõe: aborto como crime hediondo, bolsa-estupro, entre outros; no que diz respeito à fertilização in vitro, experimentos com células-tronco e congelamento de céulas, o Projeto de Lei é uma verdadeira volta a Idade Média. Acredito que devemos discutir as questões de biossegurança, de melhoramento genético, dos transgênicos mas, com o objetivo de melhor regulamentar tudo — até mesmo desburocratizar — além de incentivar mais projetos bem fundamentados e embasados e conceder mais incentivos aos pesquisadores. Para que se possa haver o retorno à sociedade. Entretanto, o que o Estatuto do Nascituro propõe é justamente o contrário, é literalmente andar para trás!

Todo este “mimimi” religioso não é exclusivo das células-tronco. Os primeiros transplantes de órgãos, cirurgias, até mesmo as transfusões de sangue, foram condenadas por se estar “intervindo no curso natural das coisas”. Por natural entenda-se: aquilo que não pode ser mexido.

Pode até se argumentar: “Ah mas se deixar o óvulo fecundado lá no útero quietinho ele pode vir a se tornar um feto… ou não”. Gente, mas “se” ele se fixar na parede uterina, “se” a mãe o quiser conceber, “se” não houver nenhuma complicação de má formação, “se” o óvulo fecundado não for expelido pelo próprio corpo. São tantos “se”.

Quer dizer que “se” vou morrer um dia, não devo mais continuar vivendo? “Se” amanhã faltar água, não tomo banho hoje? “Se” não for para enriquecer, não vou mais trabalhar? “Se” vou escolher viver no mundo do “se”, o que vou fazer da minha vida de agora em diante?

Por fim, deixem a imagem dos “cientistas malvados” para os escritores talentosos, roteiristas de filmes, novelas, peças de teatro, etc. Porém, não usem como justificativa para mandar no meu útero, meu corpo e no meu direito de escolha.